quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Tempo destruidor

A eternidade é o instante
Que nunca passa e nunca avança
Fica sempre sendo, apenas um segundo
Um pequeno milésimo de segundo
Onde gira este mundo

Meu coração sangra transpassado
Com a seta do tempo que tem me ultrapassado
Meus pulmões tentam respirar, mas todo ar é passado
Não há como andar para trás
O que foi já acabou, morto e enterrado jaz

Meus olhos querem ver o que há adiante
Não há nada além do instante
No futuro há a névoa obscura constante
Que me obriga a avançar de forma lenta
Pois a rotina nos engana
Só por que até agora o sol sempre renasceu
A cada novo dia que surgiu
Não significa que amanhã ele estará lá
Se hoje aqui estou
Escrevendo estes versos deformados
Amanhã já posso não estar mais

domingo, 5 de dezembro de 2010

Ascensão e Queda

Como saber se chegamos ao topo
Se temos medo de subir
Pois sempre achamos que vamos cair
Nesta condição, como posso sorrir?

A vida cansa
E a vida me aborrece
Tudo isso me enfraquece
Tudo isso me entristece

Nos ensinaram a sonhar
Mas não nos ensinaram a lutar
Nos ensinaram a desejar
Mas não nos ensinaram a conquistar

Ridícula é a esperança
É necessário morrer
Dar um fim nesta dança
Fazer uma mudança
Pela morte eu vou procurar
Para então me enforcar
Em suas longa trança

O pensamento positivo se torna uma ilusão
Pois sonhar demais só trará mais dor
Sempre é bom ter os pés no chão
E ver qual o real caminho a seguir
Para que não venhamos a cair de um alto penhasco
Por não termos visto o caminho
Quando estávamos com a cabeça nas nuvens


segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Alegorias da existência

As vezes eu quero chorar
E às vezes eu preciso morrer
Alguns erros eu quero esquecer
Já aprendi o que tinha que aprender
As vezes não quero viver
E às vezes preciso me lamuriar
Um morto sente alguma coisa?

Com tantas ideologias,
Por quais eu deveria me sacrificar?
Vou lá eu saber
Uma ideia abstrata vale uma vida?

Em meio a tantas simbologias
Sem rumo eu quero caminhar
Talvez até me perder
Entre os restos de uma existência destruída

Fazemos tantas alegorias
Para disfarçar o destino que há de chegar
Ocultar o fato de que qualquer um pode morrer
E dentro de alguns anos será uma vida esquecida

domingo, 31 de outubro de 2010

Á Sombra do Corvo

Será lançado no dia 20 de novembro na Jedicon em São Paulo a antologia de "À Sombra do Corvo - poesias sombrias" da Editora Literata, livro do qual eu participo com o poema "Minha morte".





Maiores informações:
http://www.editoraliterata.com.br/
http://editora.estronho.com.br/

O abismo da morte (The abyss of death)

Eu despenquei no abismo da escuridão
Para dele nunca mais sair
O sangue em minhas mãos
Sangue da vida que terminou
A gadanha a ceifou
Aqueles olhos me hipnotizavam
Me atraíam para este local
Uma olhar sem vida
Um olhar sem dor
Segui o caminho dos ancestrais
Todos os caminhos
Tiveram o mesmo destino no final
Não havia nem bem e nem mal
Não havia deus, diabo ou qualquer outro animal
Apenas o abismo da escuridão
No qual todos nós permanecemos após a morte
Eu segui aqueles olhos
Havia passos no caminho
Muitos passos apagados
Outros eram recentes
Passos de adultos, passos de crianças
Todos nós vamos para o abismo
Havia marcas de rastejo
Das crianças que asfixiaram com leite materno
Ou daquelas que morreram no berço
Outras morreram antes de nascer
E nunca descobriram o que é amor materno
Nunca viram os rostos de suas mães
Agora rastejam para este abismo coletivo
Pois a deidade não conseguiu largar seu egoísmo
E proteger os inocentes e indefesos
Eu segui aqueles olhos
E pude ver o quão efêmera é a vida
Despenquei no abismo
Vi tantos que como eu
Caiam eternamente
Na completa ausência de sentidos
Nem dor, nem choro
Nem felicidade, nem sorrisos
Se na vida por tudo sentimos
Na morte não há nada o que sentir


I fell into the abyss of darkness
To nevermore exit of it
The blood on my hands
Blood of the life that ended
The scythe reaped it
Those eyes got me hypnotized
Attracted me to this place
A look lifeless
A look without pain
I followed the path of the ancestors
All paths
Had the same fate at the end
There was neither good or bad
There was no god, devil or any other animal
Only the abyss of darkness
In which we all remain after death
I followed those eyes
There were steps on the path
Many steps erased
Others were recent
Steps of adults, steps of children
We all go into the abyss
There were marks of creep
Of the children who were asphyxiated with breast milk
Or of those who died in the cradle
Others died before birth
And never discovered what maternal love is
Never saw the faces of their mothers
Now they creep to the collective abyss
Cause the deity could not leave his selfishness
And protect the innocent and defenseless
I followed those eyes
And I could see how life is fleeting
I fell into the abyss
I saw many as me
Falling forevermore
In the complete absence of meaning
No pain, no cry
Neither happiness, nor smiles
If we feel for everything in life
In death there is nothing to feel




segunda-feira, 11 de outubro de 2010

NECROPHAGYA!

Está disponível para download gratuito o livro de contos de terror "NECROPHAGYA" escrito por Marius Arthorius.

Abaixo o prefácio do livro...

PREFÁCIO
Necrofagia, o ato de comer carne em decomposição.
Acompanhe esta leitura através do terror, em diversos contos que lhe trazem um banquete de carne humana podre regada a sangue. Mas não coma apenas, procure apreciar o manjar necrofágico, pois em cada mordida, em cada palavra lida, há uma crítica oculta nas entrelinhas.
Sacie seus instintos animalescos e pensantes ao mesmo tempo. Adentre por abismos éticos e morais, mas cuidado para não se perder e não mais voltar dos caminhos insanos que você está prestes a explorar. Você tem coragem de ler estas palavras? De tê-las gravadas em sua mente?
Conheça seus “demônios” internos, os seus pensamentos assassinos mais íntimos e revoltosos estão prestes a serem aliviados. Você tem um encontro marcado com as mortes que se ocultam nas páginas deste livro, não perca tempo, comece a fazer parte destas histórias, inspire o delicioso cheiro de carne pútrida que há diante de você.


Apreciem a leitura...
Link para download ou então através da barra lateral no tópico "Livros do Autor":
http://www.4shared.com/document/S-3Yi4C8/NECROPHAGYA_PDF.html

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O preço da sociedade

Nascemos para vida
Esperando a morte certa
Tantas preocupações
Abalam a nossa curta vivência
Fatos que se passam
Em alguns quilômetros quadrados
Destroem nossa tranquilidade
Fatos que acontecem
Em alguns anos
Nos deixam ser dormir
Tolas preocupações
Nada significam
Nada representam
Perante o gigantesco universo
Nada são
Perante a duração do tempo
Somos seres egoístas
Achamos que nossos minúsculos territórios
São o próprio universo
Defendemos com nossas vidas
As fronteiras imaginárias
Que os governos criaram
Criamos nossos cercados
E denominamos eles de pátrias
Nos confinamos em nossos estábulos
Denominamos eles de casas
Queremos que tudo tenha um valor
Tudo tem seu preço
Do conhecimento ao sentimento

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Devaneios

Trago o futuro em meus olhos
E a morte em meu encalço
Trago na face a doença
E na mente a vaidade
Trago na boca a acidez
E na língua palavras rudes
Trago o sofrimento no coração
E na alma...

Esqueci
Não existem almas
Nunca vi, nunca senti
Nunca verei, nem me lembrarei
Nunca precisei e nem mesmo sonhei
Nunca gostei, nem me interessei
Existe apenas a imaginação
Enraizada no coração
Que será esmagado em minha mão

sábado, 31 de julho de 2010

Envelhecer

http://www.estronho.com.br/poemas-estronhos/4499-envelhecer.html

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Morrer sonhando

Ontem eu estava morrendo
O ontem se foi
Se ontem eu morri
Por que hoje alguém me sorri?
Envolvendo-me na mortalha
Cortam-me com a navalha
Todas essas agruras da vida
Tolas preocupações
Ou preocupações necessárias?
Cada uma é uma lâmina
Cortando minha mente
Cortando meus sonhos
Ontem eu morri
E hoje volto a morrer
Quanto mais envelhecemos
Mais sonhos são destruídos
Novos sonhos se criam
Alguns são abortados
Outros ficam estagnados
Esperando o momento
De se tornar realidade
Para que os cortes sejam suturados
E os olhos enxugados

domingo, 18 de julho de 2010

Anthropophagy I

English language version of the poem "Antropofagia I" published in the book "Antropophagya" by Marius Arthorius

Biting and tearing
The fragrant human skin
Bursting with the traditions
Food my body
With the meat of my similars
Digestion nefarious and adored
Breaking the tendons
That sustain the beings
That makes up the backbone of society
Originated by deformed embryo
Considered perfect and normal
Nothing too usual
Structure aborted
Does not sustain itself
Condemned to die
Nature originated
Putrid and bloody placenta
Surrounds and suffocates the child originated
Called of
Society
Devour the stagnant society
Allow it to head for the Nothing

terça-feira, 29 de junho de 2010

Vivissecção

Vinde a mim, ó desgraça funesta. Arrebente meu corpo com a gadanha que tu carregas. Taxidermize meu corpo, impregne ele com o sal que colocamos dentro da pele dos animais eviscerados que serão empalhados. Faça a precisa incisão inicial abaixo do meu tórax, arrastando a lâmina até minhas genitálias, separe a pele da carne. Preserve meu couro para a posteridade. Pois é com a aparência externa que as pessoas se importam. Destrua tudo que há dentro de mim. Preencha minha pele com macio algodão, sustentado por maleável arame de metal. Assim meu interior será agradável para todos.
Arranque meus olhos, pois eles são as janelas da alma. Através deles demonstramos os sentimentos de nosso encéfalo, sempre oculto na caverna craniana. Forneça para mim olhos de vidro. Que nada demonstram além do olhar vago e insensível de uma criatura morta. Para que assim eu não chore mais pelas paixões perdidas, pelas palavras não ditas e pelos momentos de alegria que ficaram no passado. Assim tem-se o protótipo perfeito do estereótipo social. Um ser que nada sente e que com nada se importa.
Aqui eu me encontro. Com todos estes objetos afiados em minha frente. Frio metal que dilacera a pele humana, como frias palavras que dilaceram os sentimentos humanos. Trazendo-nos as incertezas que se ocultam em todas as partes da vida. Viver é como andar em uma corda estendida sobre um abismo. Seguimos em frente, tentando manter o equilíbrio, rumo ao futuro. No entanto, basta um pequeno erro para cairmos na escuridão abissal. E dela não há mais retorno. Pois nenhuma mão poderá te alcançar, quando com a morte você se encontrar.
Os pregos com os quais agora me perfuro em autoflagelo, fazendo-os romperem a imaculada estrutura de meus ossos, rompendo barreiras rígidas e ocultas de osteócitos e osteoblastos. E talvez até dos osteoclastos. Numa vã representação da dor que assombra minha consciência. Destruindo minhas memórias como se eu tivesse caído nas garras de um parasita indomável. Para o qual eu represento apenas um banquete carnal a ser calmamente devorado. O rubro sangue escorre por inúmeras perfurações espalhadas em meu corpo. Libertando os eritrócitos antes aprisionados em minhas veias e artérias, livres para se encontrarem com alguns leucócitos. Livres para trazerem a morte para perto de mim.
Pudera arrancar todo e qualquer sentimento que verte através das conexões dos neurônios que compõe meu cérebro. Livrando a mim mesmo de sentir qualquer coisa triste ou feliz. Apenas vivendo, alheio e independente de tudo. Em uma cirurgia cerebral e corporal devo interligar meu consciente ao subconsciente, e assim, poder purificar meu corpo através do colapso de minha epiderme. Devo arrebentar meus músculos, como se os sarcolemas fossem devorados por um verme. O nematóide que destrói o antropóide.
Com a faca afiada, despedaço meus dedos. Um a um, separando cada falange. Dissecando cada nervo e tendão. Cortes rápidos e certeiros. Ignoro a dor, pois ela não se compara ao desespero que se instala em minha mente. Dividido na eterna dualidade que freqüenta toda pessoa, dividido entre a vida e a morte. Entre a perda e a rejeição, tudo vira aflição. Percebe-se que felicidade é mera ilusão. A corda da vida oscila fortemente, desgastando-se e quase arrebentando. Mas não é o suficiente, muito mais deve ser feito. Pois a loucura ainda não me encontrou. Dela eu dependo para que talvez eu desfrute da felicidade. Um escape da realidade.
Ainda usando lâminas afiadas, inicio a retirada de minha pele. Como se fosse uma simples veste que oculta a real natureza humana. Que oculta toda a nossa ancestralidade evolutiva. E é essa aparência que quero libertar. Somente assim poderei em paz descansar. Arranco-a lentamente saboreando a descoberta do desconhecido. Tornando minha beleza interior algo conhecido. Sem minha pele para me proteger, sinto quão gélido, frio e cruel é o mundo. Indiferente perante nossa presença animal. Meu corpo, agora vermelho, apresentando nossa cor interior. Como a pele de um demônio imaginário. Estremece perante o sopro do futuro. Emanado de algum dragão que se oculta no abismo que vejo abaixo de meus pés. O abismo da morte, no qual poderia finalmente encontrar a loucura. Meu corpo entra em espasmos devido às tormentas do passado. Seguro-me fortemente na corda vida, para não cair antes do devido tempo. Para não morrer antes do derradeiro momento. Pois a libertação deve ser finalizada. Para que a morte possa ser cruamente aproveitada.
Perco o controle sobre meus músculos. Com esse acontecimento, o conteúdo de meus intestinos escapa, deslizando sobre minha pele, esquentando minhas pernas. O adorável cheiro humano que está sempre perfumando a sociedade. Que demonstra o quão ridícula é nossa presença, apesar de todas as máscaras de importância que tentamos criar.
É necessário raspar a carne que envolve meus ossos. Assim aliviando o peso que há sobre mim. Pedaço por pedaço vou retirando-a. O colapso dos nervos que impulsionam os sinais de dor até meu cérebro. Deixando-o imerso em profunda confusão. Despedaço meu corpo, semelhante a qualquer outro pedaço de carne. Tudo para ter um segundo de tranqüilidade, esquecendo o desespero solitário que está enraizado dentro de mim. Sugando todas as minhas forças e vontades. Os sonhos se desfazem perante a doce ilusão da realidade. Realidade que eu percebo através de meus sentidos que facilmente podem ser enganados para ver tudo distorcido.
Esse barulho infernal que ouço, seria o barulho que a verdade produz em nossas mentes? Ou seria o barulho da dor representada através de meus gritos desesperados? Ainda tenho forças restantes. Com uma longa agulha perfuro meus ouvidos, faço o metal adentrar na escuridão de minha caverna craniana. Uma pequena dor para se obter o silêncio enlouquecido dos que foram eternamente esquecidos. Continuo a gritar, sinto a vibração de minhas cordas vocais. Faça o desespero parar! Pois se você for amar, então também poderá chorar. É o maldito risco que todos encontram quando tentam arriscar.
A mesma agulha que usei para perfurar meus ouvidos, uso para costurar meus lábios. Não sem antes arrancar a minha língua. Ela tenta escapar de minhas mãos como se tivesse vida própria. Nada que um alicate e uma tesoura não possam resolver. Está feito. Em minha frente a estrutura que permitiu que eu descobrisse os sabores do mundo. Sangue se mistura com saliva em minha boca. Engulo essa sacra mistura, como alguém que tenta engolir o choro do sofrimento. Sempre há um pouco mais para ser engolido. Já que o sofrimento é o peso que nos afoga rumo as entranhas da terra.
Quando encontrar a morte, vislumbrarei o que havia antes da vida. A escuridão. O silêncio, a ausência de sentidos e de imaginação. É a escuridão que se encontra antes e depois deste pequeno lampejo que chamamos de vida. E o que fazemos para aproveitar tal lampejo? Transformamo-nos em escravos. Escravos do dinheiro. Do sistema econômico sem o qual não conseguimos viver. Inusitadamente, o que nos permite viver é justamente o que nos impede de aproveitar a totalidade da vida. Não podemos comer papel, mas é ele que nos mantém vivos.
Mesmo com os sentidos destruídos ainda sou atormentado. Pelas lembranças da felicidade que não mais existe. E que agora não voltará a existir. Pois a corda da vida está se desfazendo. Não tenho mais forças para mantê-la. Preciso parar. Não sei como voar, para que do abismo eu possa escapar. Sei apenas caminhar e quase me arrastar. Através deste caminho no qual ninguém me ajudará. Não há como continuar. Com a fria lâmina que tanto trabalhou neste dia, que agora se encontra aquecida pelo meu sangue, irei partir meu coração em definitivo. Para não mais se recuperar. Cravo-a em meu peito. Lentamente rompendo todas as estruturas restantes. Deslizando rumo ao meu músculo cardíaco que se debate como um animal aprisionado que busca liberdade. Enquanto lágrimas dançam insanamente em minha face.
Desculpe Vida, sei o quanto tu és valiosa. Não quero depreciar sua presença, para mim você está acima de todas as coisas. Somente pelo seu valor eu já abnegaria prontamente a presença da Morte. Mas se neste caminho eu for obrigado a estar na presença da Solidão e da Escuridão, então prefiro encontrar estas duas na presença da Morte. Afinal, ela é o local de onde nós viemos.

Marius Arthorius

Salahtiel

Escrito em conjunto com o escritor Márson Alquati.

“Quem esquece os erros do passado, está fadado a repeti-los.”

O sol iniciava a sua atividade, surgindo ao longe, no horizonte distante e começando a iluminar a imensidão da planície descampada. Nada além de terras vazias e desprovidas de qualquer forma de vida, até onde os olhos podiam enxergar. Uma fina camada de gelo recobria o solo árido, refletindo o frio da noite anterior. O antigo guerreiro de asas negras arrastava-se solitário e reflexivo, em direção ao sol nascente. Assim vinha se orientando durante toda a sua atual vida. Qual mariposa desgarrada que se orienta seguindo a lua, ele o fazia, perseguindo dia após dia, o astro-rei.
Carregava, embainhada na cintura, a espada, cuja lâmina maculava-se com o sangue coagulado e pútrido de seus inimigos. Sua armadura, outrora prateada e lustrosa, agora se ressentia, amassada e suja de terra e sangue. De terras distantes e do sangue dos inimigos e amigos, mortos brutalmente em uma cruel e sangrenta batalha. Todos se foram. Sozinho ficara. Sim, era o único remanescente de seu povo. E agora rumava decidido ao encontro da derradeira batalha. A última a ser travada em sua breve vida. E a Morte, aquela inexorável e sombria dama revestida de negras roupagens e sua implacável foice o rondavam, dançando ao seu redor e zombando do triste fim a que estava condenado.
O triste fim de não ter um fim.
As melancólicas lembranças dos gritos de horrores que emergiam das profundezas viscerais das pessoas com as quais convivera a sua vida inteira permaneciam gravadas em sua memória. Gerações inteiras surgiram e desapareceram, enquanto seguia amaldiçoado a vagar pela superfície de um mundo infestado de necroses e morte, dor e sofrimento, situado além das leis de imposição do tempo e do espaço, sem que jamais conseguisse alcançar o seu momento final, sem que pudesse receber o seu merecido descanso.
Embora muitos contestassem tal afirmação, a vida eterna, pelo menos para ele, não era uma dádiva. Mas uma terrível maldição, em que a morte não era encarada como um ato nefasto, e sim, a almejada conclusão de um ciclo, ao qual, todos eram destinados. Todos os que um dia o guerreiro alado amou e agora se foram, ceifados do tabuleiro, definitiva e inexoravelmente excluídos do jogo. Todos menos ele. Um ciclo completo que se findava a cada nova geração. Ao princípio, a solidão parecia atraente, tornando-se, em determinados momentos, uma excelente e aprazível companheira. Entretanto, quando se permanece por um longo período na solidão, descobre-se que esta pode se tornar demasiado monótona.
Imerso apenas em seus próprios pensamentos, a loucura se encontrava atrás de cada porta, de cada pedra ou árvore por onde ele andejava. Passou, então, a ansiar pelo fim de sua própria existência. Que a sua combalida consciência deixasse de existir. E, com ela, toda dor e sofrimento, impostos pela inevitável e sádica passagem do tempo.
Andando pelo gélido deserto, acompanhado das três damas que todo ser vivo teme: a Morte, a Loucura e a Solidão, três irmãs que, fatal e infalivelmente, conduzem ao mesmo caminho, não tardaria para o guerreiro atingir o primeiro patamar rumo aos seus objetivos de vingança. Finalmente, a ansiada paz poderia ser alcançada. Porém, para isso, sangue culpado e também inocente deveria ser derramado, uma vez que em batalhas como a que estava prestes a travar, não existiam inocentes. Todos eram culpados, portanto, mereciam ser executados!
De repente, a voz da consciência emerge na obscurecida mente do guerreiro andante e o faz perceber que, por inúmeras vezes, as pessoas em geral, deixam-se levar, seguindo as caudalosas correntes da vida, guiadas por pensamentos fantasiosos, quase sempre forjados pelos próprios erros e experiências. Com ele não havia sido diferente. Apenas acompanhava o curso do tenebroso Rio Destino. Sofrimento e dor foram elementos sempre presentes em sua desgraçada vida, mas agora tudo isso estava prestes a mudar. Assim seguia o guerreiro, refletindo sobre sua jornada terrena, consciente de que a sua única certeza era a vingança.

* * * * *
Muito tempo antes...
Uma sangrenta guerra inter-racial entre anjos e demônios corria solta, devastando o mundo em que ambos viviam. Ninguém mais lembrava como havia começado. Ninguém se importava. O sangue e a espada, o ódio e a lança falavam mais alto. A guerra já se estendia por incontáveis séculos, dizimando ambas as raças até que restassem somente uns poucos milhares de soldados em cada facção. E, intencionados em ultimá-la, os demônios haviam iniciado uma gigantesca ofensiva contra o território dos anjos. A batalha fora terrível e só uns poucos representantes celestiais haviam sobrevivido às hordas do mal.
Foi ao raiar de uma manhã ensolarada. O acampamento dos anjos ainda dormia quando foi subitamente invadido e totalmente dizimado. Os anjos nada puderam fazer para impedir que as suas mulheres e crianças fossem chacinadas. Ninguém foi poupado.
Após derrotar o inimigo em mais uma violenta batalha em terras distantes e vencer a distância da longa viagem através das montanhas e vales, acompanhado de seu batalhão, o líder da gloriosa raça dos anjos, Salahtiel, finalmente alcançou os limites do acampamento-cidade de seu povo. E o que contemplou, remeteu-o, no mesmo instante, às profundezas do mais nefasto e cruel Inferno. O terreno, outrora composto por exuberantes campos dourados de trigo, dançando acariciados pelos doces ventos e entremeados por límpidos córregos de água cristalina, no momento, era uma terra enegrecida pelo fogo, que ainda mantinha a sua fumaça estagnada no ambiente. Uma névoa obscura que pairava a pouca altura, tentando inutilmente ocultar os horrores da guerra. Uma devastadora e nefanda guerra...
Cadáveres, de anjos e demônios, jaziam espalhados por todas as partes, entremeados por um verdadeiro mar de sangue e vísceras. O dourado do trigo ressentia-se de vermelho e azul. O sangue dos demônios e o dos anjos. Corpos mutilados, estraçalhados, despedaçados. Vidas abreviadas. Sonhos interrompidos.
O ódio tomou conta dos recém chegados. E um incontrolável desejo de vingança foi crescendo dentro de cada anjo ali presente. Ainda era possível ouvirem o som lamuriante e desesperado dos desafortunados compatriotas moribundos, lutando para se manterem vivos.
E, completamente obliterados pelo ódio e pelo desejo de reparação do mal, partiram ao encalço do inimigo. Não tardou para avistarem-no. Ao comando de Salahtiel, o batalhão angelical dividiu-se em dois grupos. E, separados, simultaneamente arremeteram-se sobre o amaldiçoado exército demoníaco, cercando-o, prontos para atacarem pelos flancos, como as pontas de um alicate que se fecham sobre o dente a fim de extraí-lo.
Munidos de seus enormes escudos retangulares, espadas, arcos e lanças empunhadas, avançaram sobre a terra queimada e caíram ferozes sobre as tropas infernais. O embate que se seguiu foi cruel e desigual. Eram apenas cem anjos contra milhares de demônios. Mesmo assim, ao final do embate, todos os soldados do Inferno, sem exceção, haviam tombado sob as lâminas azuladas das armas angelicais. E, só então, Salahtiel percebeu que todos os anjos também. Só ele havia sobrevivido. O último representante de sua raça.
Foi quando ouviu um gemido curto e abafado aos seus pés, seguido de mortiça voz. Era o líder daquele batalhão de demônios, conjurando uma maldição contra ele. Trespassou o coração do sujeito, mas não evitou o mal conjurado.
Desde então, ele que não tinha mais razões para viver, tornara-se imortal.
Imortal e solitário. Imortal e infeliz.

* * * * *
De volta ao deserto...
Acabara de eliminar o último representante da raça dos demônios e agora partia em busca do próprio destino. A última batalha estava prestes a ser travada.
Gerações e gerações haviam transcorrido desde que fora amaldiçoado pelo líder dos demônios. Condenado a vagar até os confins do mundo caçando àqueles que haviam trazido a desgraça ao seu povo.
Para ele, tão amplamente condecorado no passado pelas vitórias dos anjos, medalhas não mais possuíam valor. A única medalha que Salahtiel desejava era a da redenção.
Redenção só possível de ser alcançada com a Morte. E esta, para ele era impossível e inalcançável. Contudo, restava uma vã esperança. Uma remota chance de mudar os inexoráveis rumos do destino.
Chegou a um desfiladeiro que desembocava num precipício que não se podia ver o fundo de tão escuro e insondável que era. Aproximou-se da beirada e espiou. Só viu trevas e escuridão. Hesitou, lembrando-se do seu povo, dos parentes, amigos e companheiros de armas, da mulher e dos filhos mortos durante a invasão ao acampamento-cidade.
Só teria uma oportunidade. Se falhasse, tudo estaria perdido. Inspirou profundamente, procurando reunir a coragem necessária. Fechou os olhos e, sem medir as conseqüências dos seus atos, avançou para o vazio, sendo engolido por ele.

* * * * *

Porém, algo deu errado. E, ao acordar, Salahtiel percebeu que não só não havia morrido, como se encontrava agora, em outro tempo e noutro mundo, habitado por criaturas inferiores, primitivas e frágeis, carentes de alguém que as auxiliasse em sua evolução. Compreendeu que ele era o guia e que guiá-las seria o seu castigo eterno. Resolveu, então, fazê-lo pelas sombras. E, ato contínuo, alterou o próprio nome, por outro, mais condizente com a sua nova condição de portador e guardião da luz, além de carrasco dos ímpios e dos de má índole.
E, desde então, Lúcifer, o anjo caído, vive entre nós...

Marius Arthorius

Insânia

Olhe em algum relógio, que horas são? Em seu colo ele carrega um afiado machado. Quantos já não provaram deste metal gelado. Cada dia uma ferramenta, cada dia uma vida que ele atormenta. Viajando de cidade em cidade, sempre durante a noite. Mas ele não é um vampiro e nem nada sobrenatural, é muito pior, é humano, Homo sapiens. Ele sabia e ainda sabe que a realidade pode ser bem mais cruel que a ficção da imaginação. Ele nem se lembra quando começou com esta carnificina toda. Só se lembra que o gosto é bom e a carne é macia. Ele apenas gosta do escuro, com tantos recantos obscuros para esconder e observar, finalmente matar. Que horas são? Falta pouco, muito pouco. Ele só quer saciar a sua fome, o estômago está inquieto. E a imaginação voa rapidamente.
Se o populacho quer cerveja e futebol, ele quer sangue e dor. Como qualquer outro, um fanático espectador. Buscando pelo seu pão e seu circo. O desejo de todo povo! Preferem escapar da realidade, deixarem o governo manipulá-los, mas não trocam seu pão e seu circo por nada. E ele também busca sua diversão. Onde ele está? Está em sua cidade. Estripando e devorando algum desavisado. Bebendo sangue em cálice de ouro e comendo carne bem passada, cuidadosamente preparada. E muito bem temperada. Pode ser que ele esteja do outro lado da porta de sua casa ou te observando pela janela. Experimentando teu cheiro, excitando-se com tua face de medo e horror. Que horas são? Hora de comer! Ele está com muita fome. Anseia por esquartejar teu corpo, enquanto você grita e se contorce em agonia, chamando pela sua deidade, apenas para saber que nenhuma ajuda virá para atender suas preces.
Ele quer seu sangue doce como mel. Amarrar você e rasgar sua pele e tingir-se com o vermelho de teu sangue. Não chores, talvez ele arranque alguns de seus dentes para confeccionar um colar que poderá ser enviado de lembrança para seus familiares. Seu crânio enfeitará a estante dele, segurando alguns livros sobre anatomia humana e culinária. Que horas são? Hora de você sofrer, é hora de você morrer. Com o machado você conhecerá o real significado da palavra dor. Tu verás teus ossos sendo partidos com violência e precisão. Tu descobrirás que em apenas alguns minutos uma pessoa pode desejar estar morta há anos ou desejar nunca ter nascido. E você será a refeição perfeita, ninguém sentirá tua falta, pois em tua vida, tu foste apenas mais um na multidão. Tu que anseias pelo sangue destas palavras! Tu serás o grande banquete!
Que horas são? Quem é ele? Tu ainda me perguntas? Pergunta-me e eu te pergunto, todos tem perguntas? Se não queres pergunta, cale-se e diga “amém”. Ele é eu e eu sou ele. Apesar de que não me lembro dele. Nada fora do normal e agora? Venha para fora! Deixe-me terminar, sim, terminar de afiar meu lindo machado para te cortar, abastecer o carro e comprar os temperos. Eu quero você e ele quer você, porque eu sou ele e ele sou eu ou ele é eu? Quem se importa? Esta será tua última preocupação! Espere-me em tua casa esta noite, mas espere-me de portas trancadas, assim podemos nos divertir um pouco antes do jantar. Estou salivando por sua imaculada carne, pensando em todos os pratos que prepararei para nosso jantar. Estou nervosamente ansiando com a expectativa de te comer (literalmente).

Marius Arthorius

Louvor à Lua Cheia

A escuridão já dominou o dia. A lua cheia ilumina a paisagem com sua claridade prateada. Os seres viventes escondem-se em suas tocas, apenas os mais corajosos ou os mais temerosos se aventuram nos recantos da escuridão. Os predadores deixam suas tocas e avançam procurando pela caça, certos de que triunfarão. Pelo alimento e pelo prazer de matar. Ter em suas mãos a opção de escolha, decidindo quem vai viver ou morrer, o que melhor desejar.
São nessas noites que sou atormentado por intensa dor de cabeça. Preferiria esmagá-la com uma marreta do que sentir tamanha dor. Ver meu cérebro diluindo-se e espalhando-se pelo ar após um golpe certeiro. Poderia ser melhor do que esta dor que emana de minhas profundezas encefálicas. Se assim o fizesse, a dor acabaria. Infelizmente a dor é um justo preço a se pagar pelo prazer. O prazer das caçadas. De ser um predador.
Pois após as dores intensas de minha cabeça é que ele surge. Domina minha mente. Ele, aquele que se oculta dentro de todo ser humano. O animal selvagem que tentamos ocultar. Nossos instintos assassinos que nos mantém ligados ao mundo natural. Durante os dias normais permanece oculto sob o manto da consciência. Então, surge a lua, bela e reluzente. Divino encanto que toma conta de meu corpo. Doce amada tão distante nos céus. Para você dedico todos os meus sacrifícios, para você destino todo o sangue derramado e a carne devorada. Todo corpo violado, todo coração despedaçado.
Recordo-me da noite anterior, cada momento gravado em minha mente. Cada segundo parecia uma eternidade. Saí de casa, iluminado pela minha doce amada observando-me do alto, imaculada no céu. Respiração ofegante, um misto de odores atrativos, escolha seu prato e sirva-se. Perambulei pelas ruas andando pelos recantos obscuros. Corpo curvado e oculto, um predador espreitando suas presas. Observando, analisando, escolhendo qual seria o prato principal. Só de lembrar do sabor da carne em contato com minha língua já começo a salivar. Meu corpo todo estremece, um rugido surgiu das profundezas de meu corpo. Alto e feroz, ecoou pelas ruas da cidade semi-adormecida. Meu corpo não parece mais o mesmo. As roupas parecem me aprisionar, livro-me delas. Sinto a liberdade. Livre das vestes sociais que aprisionam a todo cidadão. Livre como vim ao mundo. Sem roupas e sem crenças. Um animal como qualquer pessoa, apenas vivendo.
Distante no meu campo de visão ela surge. Vindo em minha direção. Andando apressada na escuridão da madrugada. Vislumbro a lua, minha amada. Esta seria seu sacrifício. A batida dos sapatos dela na calçada ecoam pela rua vazia. Barulho constante e regular. Cada vez mais próximo. Permaneço oculto nas sombras, tal qual governante que manipula seu povo. Mais próxima ela está, sinto seu cheiro. O medo exala dos poros de sua pele. Aroma incomparável, o perfume mais atrativo que alguém poderia querer. O medo dos covardes e dos corajosos, sentimento que nos mantém vivos. Mas para ela o medo não seria o bastante. Não a ajudaria em nada.
Em minha frente ela está, pulo sobre ela, como um lobo pula sobre um coelho. Derrubo-a no chão. Ela tenta se livrar de mim. Seguro sua cabeça com minha mão, e faço seu crânio encontrar o rígido chão. Apenas o suficiente para a inconsciência dominar seu corpo. Carne viva é disso que preciso. Carne fresca e sangue quente. Vísceras pulsantes. Arrasto-a para o recanto obscuro de um terreno vazio. O local perfeito para fartar-me e saciar minha fome, completando o vazio que se apossou de meu pútrido encéfalo. O corpo inconsciente em minha frente, com respiração ofegante, tudo será como antes. Deixo-a desnuda, livre das vestes, cheiro a carne fresca. Olho para sua face, um filete de sangue escorre de uma das narinas. Lambo e degusto o sabor deste delicioso líquido vermelho. Fluido agradável que me embriaga e me entorpece. Dedico a você, lua, minha amada. Tão pálida e distante no céu. Abaixo-me sobre o corpo inerte. O rugido verte de minhas entranhas e é emanado por minha garganta.
A vítima acorda. Olha para mim assustada. Como se tivesse visto um fantasma. Ou talvez um monstro. Não sou nenhum, nem outro. Sou animal, sou homem. Lobisomem. Abocanho sua face, perfuro sua pele sedosa com meus dentes afiados. Que arrancam pele, carne e cartilagem. Desfazendo a maquilagem. Entre uivos, devoro-a pedaço a pedaço. Banho-me no líquido rubro. Perante o olhar atencioso de minha amada. Carne vermelha e sedosa. Suntuosa refeição. Arranco os membros, primeiro braços, depois pernas. Ação que me trás recordações internas. Arrebento seu abdômen, retiro os intestinos que se esfacelam e liberam seu conteúdo. Impregnando o ambiente com agradável odor, melhor do que tudo. Minha amada saciada está, e assim permanecerá. Até que outra vez apareça no céu, indicando que eu devo caçar, para que assim eu possa mais uma vez amar.

Marius Arthorius

Exorcismo social

Dedicado à Emili, pela companhia e conversas filosóficas.

A dor lacerante oriunda de seus pés, como se estivessem sendo repicados metodicamente. Deitado em alguma espécie de maca, fortemente amarrado. Os olhos vendados. Apenas sentia gélidos dedos percorrendo seu corpo. Lâminas rasgando sua pele. Podia claramente sentir que alguns pontos de sua pele haviam sido costurados fortemente. Sentia a dor irritante e constante de tais partes. Em que inferno de local estaria?
As vendas foram retiradas. A forte claridade do local ofuscava sua visão. Conseguia distinguir apenas uma forma humanóide observando-o. Levou algum tempo até perceber que a pessoa em sua frente usava vestes médicas. Vestes brancas, marcadas pelo contraste vermelho do sangue impregnado em diversas partes. Olhou ao redor. As paredes e o chão eram recobertos por pequenos azulejos brancos. Uma lâmpada fluorescente no teto irradiava a forte luminosidade branca. No chão havia sangue derramado por diversas partes. Ao lado da maca, uma mesa metálica com diversos instrumentos cirúrgicos. E, o horror, diversas partes humanas, amontoadas em uma bacia plástica.
- Onde eu estou? – indagou com uma voz trêmula o prisioneiro.
- Você está aqui. Não lá, apenas aqui. Não lhe convém saber a localidade. Pois essas informações são desnecessárias. – respondeu a voz fria por detrás da máscara médica que ocultava o rosto.
- Isso é um hospital? Eu sofri algum acidente? – perguntou o prisioneiro.
- Seu acidente foi nascer. Ser errante que se recusa a pensar. Tu és fruto podre. A putrefação é teu destino, para que então, a vida possa brilhar. – falando isso o médico empunhava seu fiel instrumento cirúrgico, um bisturi. – Aqui não é hospital, apenas se for um hospital para a sociedade. Indivíduos não são curados neste local, eu apenas liberto a sociedade de seu mal.
- Então por quais motivos estou aqui e o que você fez comigo? – perguntou o prisioneiro tentando libertar-se das amarras que o seguravam preso à maca. Cada movimento fazia surgir dor de diferentes partes de seu corpo. Cortes, lacerações e pontos costurados tomavam conta do que antes foi um corpo inteiro.
- Quero apenas que você compreenda tudo que seus atos originaram. Nada há após a morte, assim sendo, não há nenhum ser supremo que avaliará sua vida. Não há justiça divina. Faça você o bem ou o mal. Deve-se, pois, fazer o bem por saber que esta será a melhor convicção para se ter. Seus atos serão lembrados pelas gerações vindouras. E estas, poderão ser gratas a você, se você for bom. Entretanto, você foi mal. Ser irracional. Os piores crimes e atrocidades você cometeu. – falava o médico, curvado sobre o prisioneiro, enquanto uma marca de saliva tornava-se visível na máscara que ele usava. Rodava o bisturi no ar como um guerreiro com sua espada em combate. – Os crimes contra a mente das pessoas! Esses foram os seus crimes! Contra a liberdade individual e contra o livre raciocínio que toda pessoa tem o direito de ter! Pagarás por tais atos, ó aquele-que-ilude!
- Que deus tenha piedade de sua loucura, pois sou sacerdote. Sou os olhos e ouvidos de deus, proclamador das verdades. Se fizeres algum mal para mim estarás provocando o próprio deus – respondeu o prisioneiro.
- Tu és criatura cruel! Que assola a humanidade com suas mentiras fantasiosas de além-mundo!
- Seu louco! Solte-me agora!
- Louco?! – respondeu furioso o médico arrancando a máscara que cobria seu rosto, mostrando seu sorriso salivante de dentes perfeitamente brancos e reluzentes. Cravou o bisturi no umbigo do prisioneiro, fazendo sangue verter, arrastou o bisturi rumo ao tórax. Abrindo uma fenda vermelha e superficial na pele. Enquanto o prisioneiro se contorcia e chamava pelo deus que ele tanto havia louvado. – Sua divindade não responderá aos teus apelos. Da mesma forma como ela não atende aos chamados de milhares de crianças inocentes que morrem de fome todos os dias! Vítimas do sistema econômico. Tudo o que você fez foi juntar suas mãos e proclamar palavras ao vento, nenhuma ação digna para com a sociedade. Mais vale poucas pessoas trabalhando do que milhões e milhões ajoelhadas perante imagens, esperando que alguma salvação venha dos céus.
O médico fez mais uma incisão no tórax do prisioneiro, indo de um mamilo a outro. O prisioneiro gritava e debatia-se tentando escapar de seu castigo. Enquanto sua última refeição escapava pela sua boca na forma de vômito. Liberando no ar um característico odor azedo. O médico então trocou o bisturi por uma pequena serra elétrica. De lâmina esférica e giratória. O zumbido do motor de tal instrumento tomou conta da sala e o horror se apossou dos olhos do prisioneiro. O médico iniciou a abertura do tórax de seu paciente, as costelas tremeram, por um momento a lâmina da serra enroscou nos ossos. Um forte soco no tórax fez a lâmina soltar e seguir seu digno trabalho. Chuva vermelha, sangue jorrava e espalhava-se para todos os lados. Escorria sobre a pele do prisioneiro até a maca e desta para o chão. A roupa do médico estava tornando-se cada vez mais rubra. Gritos e mais gritos originavam-se da garganta do prisioneiro.
- Então criatura cruel, aquele-que-ilude. Que se apossa das mentes indefesas e impõe suas crenças. Não gostas da dor? A Dor, um dos mais puros sentimentos, originado pelos atos nefastos ou amorosos. Originado de danos físicos ou sentimentais. Sente-se dor ao perder a pessoa amada, ou ao estar longe da mesma. Sente-se dor ao cortar uma parte do corpo ou ao mutilar um membro. Quem conseguirá compreender sua ligação com os demais sentidos? Dor acarreta sofrimento. Felicidade? Somente para alguns tipos de loucos. Não que sejam poucos.
O sacerdote aprisionado balbuciava palavras sem nexo. Os olhos vagos e distantes, moviam-se rapidamente em suas órbitas. Golfadas de sangue saltavam de sua boca, seu tórax era um lago vermelho, um lugar que qualquer vampiro gostaria de banhar-se. O médico admirava sua obra de arte. As tonalidades de cores perfeitamente agrupadas, cenário artístico inconfundível.
- Será que alguma pessoa sentirá saudades de você? Talvez aqueles que venderam as mentes para você. Em troca de salvação eterna e reconforto ilusório. Pois temem que a morte esteja presente atrás de cada esquina. Talvez estes sintam sua falta. Ah! A Saudades, essa vil criatura nefasta, que age em companhia da Esperança. Duas senhoras malévolas que trazem tanta aflição para as pessoas. Se forem acompanhadas da Incerteza, então se tem o palco para que a Dor e o Sofrimento possam agir. Como entender tais criaturas? Pois se até a mais fria e calculista das pessoas já experimentou sentimentos em algum momento de sua vida. Tenta-se em vão ser como uma máquina, apenas agir, nada sentir. Que diferença fará? Se no final, cada um é apenas mais um animal. Então, nada melhor do que desfrutar dos mais variados sentimentos.
No lago de sangue do tórax do prisioneiro era possível perceber as oscilações ocasionadas pelos batimentos cardíacos. O corpo dele tremia por inteiro, movia a cabeça de um lado para o outro, gemendo e grunhindo. Lentamente asfixiando com os pulmões colapsados e o tórax arrebentado.
- Diga-me, criatura das trevas, desejas proclamar alguma palavra antes que seu fim chegue? – disse o médico enquanto deslizava sua mão protegida por luvas de látex sobre a testa do prisioneiro. Deslizando-a pela lateral da face, até chegar ao queixo, para então segurar firmemente a cabeça do prisioneiro. – Nada a declarar em sua defesa? Veja que sou benevolente, não agi como a sua inquisição, pois lhe dei uma chance de oferecer-me vossa opinião. Apesar das provas já indicarem que tu és um ser abominável. Fujam as pessoas da presença de teus semelhantes. Corram e gritem assustadas, pois o parasita mental está a caminho. Parasita que agora irá perecer.
Nenhuma palavra saiu da boca do prisioneiro. Apenas baixos gemidos, arfadas de um ser tentando encontrar o ar. Seus pulmões não mais funcionavam. O mundo tornava-se escuro para ele. Nenhum som, nenhuma sensação. Nem mesmo a visão do médico que tinha submetido-o a tal castigo.
- E nesta sociedade o que tu vê? Oculto, abaixo das sombras da escuridão dogmática, o que tu vê? O medo? A morte? Responda-me! Se ainda há um pingo de vida digna em teu corpo, pronuncie as palavras e não ouse dar gargalhadas! – no lago de sangue, as oscilações causadas pelos batimentos cardíacos tornavam-se cada vez mais lentas, com um intervalo de tempo cada vez mais longo. – Encontrou o teu futuro? Chegou até ele? Aqui no presente, ao qual estamos eternamente acorrentados. O passado se foi e novos momentos chegam a todo instante. Que venham os tempos do amanhã. O futuro cheio de incertezas semideterministas, originadas de nossos atos e escolhas. Influenciado por escolhas de outros. Nada a declarar?
O corpo do prisioneiro estremeceu em espasmo uma ultima vez, os olhos reviraram nas órbitas. A vida chegou a seu fim. Suor escorria da testa do médico, cirurgia de precisão inigualável. Não poderia perder a morte que havia em suas mãos. O artista interage com sua obra do início ao fim. Criando uma ligação especial e, por vezes, até sentimental. A obra médica estava quase finalizada.
- Devem-se temer as criaturas que se escondem debaixo do manto obscuro do futuro? – perguntou o médico. - Ou simplesmente seguir adiante nesta luta cruel e implacável, nascendo a todo dia que se inicia e morrendo a cada dia que termina. Um dia a mais na vida, um dia a mais rumo a morte. Assim é, assim foi, e assim será. Sou médico e como devo livrar a pessoa de seus males, jurei para mim mesmo que não deixaria nenhuma doença corromper as pessoas. Extirpando os cânceres da sociedade. Eis minha missão, pois sou artista da razão. Nenhum ser pútrido continuará a parasitar nossa insana sociedade, enquanto eu estiver aqui para com tal exorcismo mudar a mentalidade.
O médico colocou as mãos dentro do tórax cheio de sangue. Como alguém que lava seu rosto em uma bacia de água, assim ele o fez. Lavou seu rosto com o líquido vermelho que há dentro de todos. Refrescando-se com fluido vital, impregnando-se com cheiro visceral. O médico cumpriu sua missão.
Marius Arthorius

Desígnio Divino

Acordou ao ser banhado pelos primeiros raios de sol. A claridade o incomodava. A visão ainda estava turva, devido aos eventos da noite anterior. Pesadelo após pesadelo. Sonhos desconexos compostos por cenas infernais. Originadas de suas lembranças diárias. Mas não era ruim. Não. Para ele o sofrimento alheio era alimento para seu humor. A força vital pela qual ele tanto ansiava, podia ser facilmente encontrada no sofrimento.
A dor de cabeça era quase insuportável. Só seria de fato insuportável se ele não fosse apaixonado pela dama do sofrimento, a qual chamamos de dor. Sim, a dor! Imaculada sensação que faz com que nos sintamos vivos. Que reduz a tão grandiosa doçura da vida. Assim eram seus pensamentos. Melhor do que sentir dor era causar dor. Lamber a pele de uma pessoa trêmula, enquanto arranca lentamente as vísceras da mesma. Com mãos nada delicadas. Apreciando o odor emanado do interior de uma pessoa que ruma para a morte.
Seus olhos já se acostumaram com a claridade. Estava no interior de uma igreja. A sua igreja, construída com imensos blocos de rocha enegrecida pelo tempo. O altar de ouro ostentava imagens sacras, com detalhes dourados feito do mesmo material que o altar. Imagens de amigos imaginários que enfeitam as mentes das pessoas. Levadas pelo seu medo da morte e por receios diante das incertezas do futuro. Criam estes amigos para consolarem a si mesmos. Este era um pensamento que ele não podia se dar ao luxo. Pois ele era o sacerdote. As pessoas vinham até ele buscando por consolo para suas vidas supérfluas. Buscando explicações para o pós-morte e justificativas para os sofrimentos sociais. E aceitavam qualquer resposta por mais descabida que seja, pois o sacerdote ostentava uma imagem de autoridade. Ao conseguirem o consolo, criavam uma dívida para com o sacerdote. Que só poderia ser paga com sangue e submissão.
Ele olhou para fora, através dos vitrais da igreja. Viu que a fumaça ainda subia, oriunda do herege que havia sido queimado na noite anterior. Apenas mais um tolo, que questionou as supostas autoridades que dominam a sociedade. Pagou o devido preço. Como muitos pagaram e muitos ainda pagarão enquanto o tempo for tempo para a humanidade.
Uma vez que uma pessoa era acusada de heresia, não havia mais como escapar da morte. Podia apenas escolher, morte rápida ou lenta. Caso o herege confessasse o suposto crime, era imediatamente mandado para a fogueira. Pois os cânones impedem a igreja de derramar sangue. Caso negasse o crime, era torturado até a morte. Afinal, a negação nada mais é do que o “diabo” mentindo. E, para o acusado, a tortura em terra seria melhor do que as chamas eternas do inferno. As supostas autoridades não podiam estar erradas. Sendo assim, qualquer acusado era culpado.
Quem dirá um sacerdote, aquele-que-ilude, o porta voz da divindade inexistente. Este, jamais poderia ser contrariado. E até aqueles-que-governam, se submetem perante as tolas opiniões, que tanto atrapalham a sociedade, fornecidas por aqueles-que-iludem. Aceitam a opinião destes seres nefastos, sanguessugas de mentes, pois todos temem a única certeza absoluta da vida humana. A certeza de que a morte chega para todos.
E ali estava, o sacerdote, preparando-se para mais um dia de torturas e mortes. Santo trabalho. Torturando e matando pessoas inocentes, cujo único erro foi questionar e pensar. Tentaram ter mentes livres. Arrebentando as correntes dogmáticas que são impostas em todo integrante desta sociedade. Libertaram suas mentes. Infelizmente encontraram um fardo pesado. Mortes imersas em torturas. Sempre justificadas como desígnio divino.
O sacerdote desceu até o porão da igreja, passando por corredores obscuros, iluminados por fracas labaredas de tochas presas às paredes. Pessoas encontravam-se acorrentadas no porão. O choro lamuriante era a sinfonia do dia. Apreciem, pois o maestro acabou de chegar. Ele colocou seu crucifixo, fez o sinal da cruz. Foi até uma lareira com brasas acesas. Retirou deste lugar uma panela, cheia de chumbo fervente. Rumou para a pessoa mais próxima de si. Havia no mínimo uma dezena de prisioneiros. O mais próximo era um jovem que questionou a autoridade do padre durante a catequese. Pagaria agora por sua insolência. Ele estava firmemente preso. Mais dois sub-sacerdotes se aproximaram. Segurando a cabeça do jovem e mantendo sua boca aberta. Colocaram um funil em sua boca. O sacerdote então despejou o chumbo derretido direto na garganta do jovem. O cheiro de chumbo misturado com carne queimada logo tomou conta do ambiente. Magnífico aroma da purificação social.
Ele nunca mais questionaria as autoridades. Gemidos guturais foram emitidos das profundezas do jovem completando a tão esperada sinfonia da tortura. Ele tentava, em vão, se libertar. Debatia-se, tentava cuspir o conteúdo que encontrava suas vísceras. Dentro de si, ardia um inferno. Metal e carne se tornavam um só. Não tardaria para a morte alcançá-lo. As pessoas ali presentes choravam e gritavam. Temendo o horroroso fim que estava reservado para elas. Cada uma provaria uma tortura diferente. Purificadas elas seriam. Para conseguirem alcançar a eterna salvação de suas almas inexistentes.
Do lado de fora da igreja, uma multidão havia se reunido. Perante os gritos de dor dos hereges. A multidão ajoelhava-se e emocionava-se. Com o bom cumprimento das vontades “divinas”. Louvavam, sorriam e festejavam. Levados por suas crenças irracionais. Agradecendo ao sacerdote por “purificar” a sociedade. Livrando-as dos questionamentos que tanto assolam a mente humana, que poderiam fazê-las deixar seu conformismo e encarar as mudanças. E estas mesmo sendo positivas, acabam por assustar a sociedade.

Marius Arthorius

Antropofagia

Este foi o primeiro conto que eu escrevi...

As lembranças daquele sorriso iluminado pelo sol do meio dia. Imaculadas imagens fixas em sua memória. A cena repetia-se em sua mente enquanto deslocava-se por entre o pasto. Rumando de volta para a casa da fazenda. Os campos ora verdejantes, ora dourados se estendiam até o horizonte. Entremeados por pequenos capões de mata, em que as araucárias e o canto dos grimpeiros marcavam presença.
Em meio a tal paisagem paradisíaca. Cortada pelos gélidos ventos do inverno que se aproximava. Havia sido ali. O local escolhido para realizar seu ato tão sonhado. E aquele sorriso permanecia em sua memória. O último sorriso que ele teve oportunidade de dar em sua vida. Ela estava satisfeita. Saciada, pois um de seus mais profundos desejos haviam sido realizados. Em meio as lindas paisagens dos campos sulinos. Longe de tudo e de todos.
Tudo que restou do homem que um dia a amou, era aquele sorriso. Um grande e estampado sorriso, nada além disso em sua face.

. . .

Algumas horas atrás...
Passava pouco do meio-dia quando o casal resolveu sair para uma caminhada em meio aos campos após o almoço. Nenhuma nuvem no céu, apenas o sol forte e radiante. Emanando todo seu calor e radiação que faz a vida seguir seus infindáveis ciclos através das eras. Tempo além do que qualquer pessoa consegue imaginar de forma adequada. Devido a insignificância do curto período de tempo de vida que todos possuímos.
Andaram por mais de uma hora, de mãos dadas, inspirando o ar puro dos campos. Dançando entre o doce aroma das flores. Porém, sem nenhum motivo aparente, ela desmaiou. Caída no chão, inconsciente. Ele em desespero tentou ampará-la. Tudo em vão. Nada surtia resultados. A partir de tal momento, tudo na mente dela, passou ser acontecimentos incertos. Lembranças vagas. Pedaços desconexos de tempos passados. Oriundos da doce felicidade por ela experimentada.
Não demorou muito e ela acordou ouvindo aquele zumbido ensurdecedor, sua cabeça latejando. Parecendo que explodiria a qualquer momento. O mundo não mais lhe agradava. As folhas do pasto pareciam furar-lhe a pele como agulhas e facas. O sol parecia queimar sua pele impiedosamente. E o rosto dele, antes imaculado, olhando para ela. Agora parecia um cadáver em sua frente. Um pedaço andante de carne que deveria ser devorado.
Em seu rosto ele ostentava preocupação, buscando palavras para tentar consolá-la. Para ela, o som das palavras pareciam sinos ensurdecedores badalando em seus ouvidos. Arrebentando a estrutura de seus tímpanos. Ela berrou, e ele que estava abaixado ao lado do corpo dela. Acabou por cair sentado com o susto.
Ela continuou a berrar, afinal naquele local ninguém ouviria seus gritos. Deitada no chão, começou a arranhar seu próprio rosto. Cravando as unhas em sua própria face. Rasgando, dilacerando, rompendo as estruturas de sua pele. Demonstrando que por dentro somos todos iguais. Expondo o vermelho infernal que compõe nossos corpos. O sangue começou a escorrer. Tornando rubra as partes intactas de pele facial.
Ele tentava segurá-la, numa tentativa fútil de que ela parasse de ferir a si mesma. Tentando libertar-se do homem que tanto a amava, ela chutou suas genitálias e ele rolou para o lado. Lacrimejando, tamanha era a dor que emanava de entre suas pernas. Enquanto ele lamentava-se e xingava, a mulher levantou-se, com sangue gotejando de sua face.
O rosto profundamente marcado por arranhões. Olhava fixamente para o homem em sua frente. O homem que algum dia ela poderia ter amado. Entretanto, no momento, ela havia perdido o controle sobre si mesma. Libertando o animal descontrolado que existe dentro de todos nós. Ansiando por sangue e carne fresca. Um predador que espreita todas as nossas atividades. Oculto sob o manto da lucidez e da consciência. Assim o denominamos de instinto. Quando em liberdade chamam-no de loucura. E quem teria sã consciência de afirmar certamente o quê é a loucura. Se não nossos mais profundos desejos, enraizados na escuridão de nossas mentes.
Ela veio à fazenda visando dar continuidade ao seu tratamento psiquiátrico. E a única coisa que realmente fez foi abandonar o uso de seus remédios. Enganando o homem que a amava e que tanto preocupava-se com ela. E agora estava em meio a um surto psicótico, uma alucinação em que a mente domina o “eu”. Perdendo-se o controle sobre si mesmo. Libertando nossos demônios.
Ele recuperou-se da dor e levantou-se. Indagando-a se tudo estava bem. Para ele nada estava bem. Para ela, no entanto, tudo corria de forma maravilhosa. Um doce sonho de uma noite de verão. A mulher inclinou sua cabeça para a esquerda, lambendo seu próprio sangue. Sentindo o sabor de inicio doce e levemente salgado no final. Néctar da vida, regando nossos corpos. Encarou-o com um olhar vago, e após, inclinou a cabeça para trás. Olhando para o sol. O astro maior ao qual devemos nossas existências. A divindade materializada que todos os povos louvaram ao longo da história da humanidade, denominando-o de diferentes formas e criando diferentes seres para sua personificação imaginária.
Olhou para o homem novamente, que encarava-a assustado. Ela sorriu, demonstrando os dentes sujos de sangue, e ele retribuiu. No que ela rapidamente pulou sobre ele. Derrubando-o no chão.
- Seu maldito centurião! – gritou a mulher – Não irás invadir minhas terras carnais com seu corpo impuro.
Caídos no chão, ele tentava se livrar dela. E esta, cravou seus dedos nos olhos dele. Perfurando e esmagando os mesmos. Ele viu sua visão distorcer-se até sumir por completo. Quando uma dor irradiou de seus olhos. Ele urrou de dor, e acertou a mulher com um soco.
- Não me amas mais? – indagou a mulher – Esqueceu-se de sua promessa? De me amar na doença e na felicidade até que a morte nos separe?
- Sua louca! Veja o que você fez comigo! – ele estava ajoelhado, gemendo de dor. Com as mãos amparando os buracos em que encontravam-se duas massas inertes, que poucos segundos antes foram seus olhos.
Ele não percebeu a aproximação dela. Indo em sua direção com uma grande pedra nas mãos.
- Amor meu, em sua face reluz nosso amor. Sem tu não podereis viver. E dos prazeres ofertados por sua carne, vísceras e ossos, eu quero provar. – falou a mulher calmamente.
Ele virou o rosto na direção da voz. Ela então ergueu a pedra e acertou-o na cabeça. Fazendo-o cair lateralmente sobre as macias gramíneas.
- E agora, eu vos ofereço, fruto da minha carne e meu sangue. Comam e bebam, pois aqui está o messias. – falou a mulher enquanto gargalhava.

. . .

Ele acordou de sua inconsciência, pela dor de sentir seus braços e pernas serem quebrados. Gritou, chorou, esperneou. Nada adiantou. Não conseguia sair do lugar. Apenas escutava as risadas da mulher. Se ele ainda possuísse olhos, a cena que veria agora faria-o vomitar. Ela havia tirado as roupas do homem. E, ajoelhada ao seu lado. Curvou-se sobre o abdômen dele. Arrancando com a boca três nacos de carne das redondezas do umbigo do homem. Três rápidas e vorazes mordidas. Sangue rubro rapidamente flui pelos locais das mordidas. Enquanto ele tremia e gritava. Sem conseguir sair do lugar.
- Pois então, comeremos e beberemos de tua carne. – falou a mulher.
Ele gritava suplicante, e até suas cordas vocais começaram a falhar. A mulher com o rosto todo arranhado. Agora pintava sua própria face com o sangue que escorria do homem. Ela esfregava o rosto sobre as mordidas no abdômen dele. Por vezes, lambendo-as e beijado-as. Aprofundando sua língua na carne do homem que tanto a amava. Enquanto ele tossia afogando-se com sua própria saliva em desespero. Então assim era pressentir a morte. Saber que após ela nada existiria, apenas apaziguava o sofrimento. O completo vazio, sem nada sentir. A escuridão completa, e degradação do “eu”.
Ela deitou-se sobre ele.
- Calma querido. Tudo vai terminar bem.
Beijou o homem. Primeiro em sua boca. Depois fez sua língua passear pelos buracos em que antes haviam os olhos. Ele não conseguia mais gritar, apenas gemia. Tentando proclamar palavras que não faziam nenhum sentido. Só lhe restava esperar pela dama de trajes negros que livraria ele de toda a dor e sofrimento que no momento passava. A dama que todos temem, mas que não conseguimos viver sem sua presença. Pois no âmago de nossos sentimentos, todos sabemos, que ainda nos deitaremos com ela. O corpo todo do homem estremeceu, sua hora chegou e passou. A vida deixou seu corpo. Sua consciência se desfez. E ele descobriu a verdade que todos temem. Não há nada para se ver após a morte.

. . .

A mulher retornava para a casa da fazenda. Arrastando consigo um cadáver semidevorado. Com as vísceras arrastando pelo chão. Ela apenas se lembrava. De seu sorriso. Um grande e belo sorriso que ela implantou no rosto do homem que a amava. Usando uma pedra afiava, rasgou-lhe a face de orelha a orelha. Um grande sorriso feliz. Reverberando em sua memória. Afinal, todos anseiam por alcançarem a felicidade. Todos querem felicidade a qualquer custo. E assim ela fez. Buscou sua felicidade. Encontrou-a no corpo daquele homem. E conseguiu deixá-lo com um sorriso nos lábios. Apenas mais um belo e amável casal. Caminhando por entre os campos, após uma adorável refeição.

Marius Arthorius

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A morte e o erro

Dentro do caixão
Restaram apenas os ossos
Roídos pelos vermes
Lambido pelas bactérias
Uma vida interrompida
“Foi a vontade de deus”
Assim dizem os conformistas
Ofertam consolos que não satisfazem
A morte veio e o levou
Não por vontade divina
Pois a divindade não é
E nunca foi
A morte veio do erro
Da escolha errada
Do descuido e da falha
Ele trouxe a morte para si
Naquela estrada
Tomada pela noite
Em momento chuvoso
Com o álcool no sangue
Ele esqueceu a consequência de seu ato
E tudo foi quase imediato
Com seu erro foi extraviado
A vida se tornou um hiato

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Delícia Gélida

Aquele corpo frio
Diante de mim
Próximo havia um rio
O barulho das águas
Balbuciava com a noite escura
O corpo frio já não tinha mágoas
A carne começava a ficar dura
A lua cheia no alto brilhava
Aquela mulher morta eu tocava
Nua ela estava
Seu coração tinha parado
E eu ficara excitado
Algumas larvas a devoravam
Tudo era uma grande festa
Eu lambia cada pútrida fresta
Celebrando o meu viver
A morte vem sem querer
Eu estava vivo sem saber
Agora eu aprecio cada amanhecer

sábado, 1 de maio de 2010

ANTROPOPHAGYA!

A primeira resenha sobre o meu livro de poemas ANTROPOPHAGYA, veja a opinião do renomado escritor MÁRSON ALQUATI, autor da série de livros ETHERNYT(http://www.ethernyt.blogspot.com/)

"Um excelente compêndio de poemas, dentre os quais alguns dos melhores que eu já li até hoje no estilo nada convencional, porém altamente fascinante, adotado pelo Marius. Com certeza, mais uma excelente contribuição para a Literatura Nacional. Que venham os próximos trabalhos desse maravilhoso e mui talentoso escritor! " (MÁRSON ALQUATI) [Muito obrigado Márson!!!]


Prefácio do meu livro ANTROPOPHAGYA, este prefácio foi escrito por Emili Bortolon dos Santos...

Ao nos depararmos com o título deste livro, logo imaginamos que nele estão contidas palavras que deixam rastros sanguinários, e nenhuma amostra vital. No entanto, é em seu título que está o que se oculta por entre as linhas desta suntuosa obra, os dois estágios em que uma pessoa pode encontrar-se durante seu ciclo terráqueo: a vida e a morte. Marius Arthorius tem grandes semelhanças com o poeta pré-modernista Augusto dos Anjos, que deixou seu nome enraizado na história literária brasileira desde o início do século XX. Assim como Augusto, Marius é possuidor de um estilo diferenciado ao compor seus versos. Usa uma linguagem científica muito bem planejada e estruturada, com elementos que vão desde um átomo até multiversos. Além, é claro, da temática mais freqüente em seus poemas, a morte. Inspirado no Manifesto Antropófago composto por Oswald de Andrade, o autor procura compor poemas de diversificados sentimentos aliados a criticas à sociedade, criando uma obra ímpar. Uma peculiar característica de Marius é deixar a critério do leitor a percepção de simbologias com um significado a ser compreendido. Antropofagia. Degustação de carne humana. Aqui estão folhas impressas para não serem simplesmente lidas. Parafraseando o próprio autor: “Devore cada palavra como se estivesse em um ritual antropofágico”, onde cada naco de carne seria a absorção dos sentimentos e conhecimentos contidos nesta obra. Deixe-se compartilhar os sentimentos do autor. Viva, ame, odeie, morra. Pois como enunciaria Oswald de Andrade, Só a Antropofagia nos une. Culturalmente... (EMILI BORTOLON DOS SANTOS) [Muito obrigado Emili meu amore!!!]



Com a ajuda do renomado escritor M.D. AMADO (http://www.mdamado.com.br/) o livro ANTROPOPHAGYA foi disponibilizado para download gratuito no site ESTRONHO & ESQUÉSITO no seguinte link http://www.estronho.com.br/downloads.html [Muito obrigado Amado!!!]

Baixem e leiam o livro!!! Ou então morram!!! :D
Abraços antropofágicos!

terça-feira, 9 de março de 2010

Indiferença cósmica

O universo se estende
Diante de mim
Infinito limitado?
Matéria escura
Que a vida procura
Buracos negros no céu
A morte da estrela
Traz a desgraça cíclica
Permitindo que a matéria
Se renove continuamente
Formando o cosmos
Cheio de mistérios
Cheio de conhecimento
Humanos são só humanos
Divindades são fantasias
O universo não nos percebe
Somos bactérias em um corpo

Para acompanhar... XTC... música Dear God...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Aqueles olhos!

Aqueles olhos!
Arranque-os!
Traga para mim!
Aqueles olhos
Era um magnífico olhar
Iluminado pelo luar
Eu queria aqueles olhos
Eu os queria para mim
Olhos tão belos!
Eu os quero
Eu procurei-os
Eu os encontrei
Agora tenho o que procurei
Tenho aqueles olhos
Com os quais sempre sonhei
Aqueles olhos
Arranquei-os!
Estão em minha frente
Num lindo vidro
Cheio de álcool
Lindos olhos!
Com a morte
Perderam sua cor
Mas serão eternamente meus

Para acompanhar Meshuggah... música Bleed...

sábado, 23 de janeiro de 2010

DESTRUINDO PARADIGMAS II

Sobre as mulheres, a sociedade e a religião.

Olhamos para a história da humanidade, tantos filósofos, líderes, imperadores, reis, escritores, mestres, guerreiros, o que nós vemos? Vários grandes nomes da história eram do sexo masculino. Em que lugar estavam as mulheres? Ocultas da sociedade, uma sociedade patriarcal na qual elas desempenham apenas um papel secundário.

Por que mantivemos as mulheres caladas por tanto tempo? Talvez porque nós homens sabemos que elas possuem um senso de justiça que muitas vezes é melhor do que o nosso. Pois trazem o instinto maternal em seus genes, elas veem o mundo com mais sentimento do que nós. Assim sendo poderiam facilmente ter alterado o curso da história da humanidade. A igreja há muito tempo já sabe do poder de influência das mulheres sobre os homens e que tal poder poderia muito bem ter impedido todas as atrocidades cometidas pela religião, assim sendo, a igreja se encarregou de tornar a mulher submissa ao máximo. As religiões transformaram deus em um homem para ele ser cruel, egoísta e corrupto, se deus fosse uma mulher, talvez seria um colo materno acolhedor, um reduto para descanso e conforto. Mas muitas religiões precisam ter um pulso assassino para continuar lucrando, portanto descartam as mulheres.

Vejamos alguns dos muitos tratamentos ofertados para as mulheres por parte das religiões e após continuemos nosso raciocínio...

Na Bíblia “Sagrada” do cristianismo...

A mulher aprenda em silêncio, com toda sujeição. Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi criado Adão, depois Eva.” 1 Timóteo 2: 11-13.

"Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo." Efésios 5: 22-23.

No Talmude do judaísmo...

A mulher é um vaso cheio de imundícies com sua boca cheia de sangue e, entretanto, todos a desejam.” Shabbath 152

Santo Agostinho...

É Eva, a tentadora, que devemos ver em toda mulher. Não consigo ver que utilidade a mulher tem para o homem, tirando a função de ter filhos.”

São Tomás de Aquino...

A mulher está em sujeição por causa das leis da natureza, mas é uma escrava somente pelas leis da circunstância… A mulher está submetida ao homem pela fraqueza de seu espírito e de seu corpo… é um ser incompleto, um tipo de homem imperfeito […] A mulher é defeituosa e bastarda, pois o princípio ativo da semente masculina tende à produção de homens gerados à sua perfeita semelhança. A geração de uma mulher resulta de defeitos no princípio ativo.”


Retornemos para nossa linha de raciocínio...

Por que tanto temor para com as mulheres?

Nesta sociedade patriarcal tomada de guerras e desgraças, um pai fica orgulhoso do filho que vai a guerra, do filho que morre em guerra defendendo fronteiras imaginárias criada por homens, defendendo diferenças pré-conceituais da imaginação dos homens. Enquanto a mãe cai em desespero por ver sua prole morrer por motivos tão banais e mundanos. Se a sociedade assumisse uma atitude matriarcal na qual a opinião das mulheres de verdade (não das tolas submissas) fosse realmente escutada e posta em prática, então o mundo começaria a ter seus maiores problemas resolvidos.

Os homens se consideram como tendo sido criados em igual imagem aos seus deuses inexistentes, a partir disto criam concepções de que podem fazer o que bem entendem a todos que os rodeiam. Inclusive aos seres vivos aos quais eles devem suas vidas, as mulheres. Ainda mais triste do que ver homens tratando mulheres como objetos, é ver mulheres aceitando tais condições. Mulheres que aceitam a submissão, que aceitam serem tratadas como objetos.

“Mas elas se casaram e dependem financeiramente de seus maridos, não possuem estudo e nem capacidade para serem independentes, não possuem condições para trabalhar, por isso aceitam tais condições”... Nunca é tarde para estudar, nunca é tarde para aprender, você pode lutar ou continuar em uma situação deplorável. Desculpas esfarrapadas de mulheres que se acomodaram em tal situação e agora preferem a submissão, vivem na lei do “deixe do jeito que está”. Tolo conformismo, temem as mudanças. Quando se vive a dois, não é para que um sustente o outro ou para que um torne o outro submisso e sim para que os dois construam uma vida juntos com mútuo respeito.

Quantas mulheres sofreram, batalharam e até morreram ao longo da história para que todas fossem tratadas com respeito e dignidade (as origens do movimento feminista tão depreciado pelas próprias mulheres atualmente). Lutaram para que suas opiniões fossem ouvidas e assim pudessem ajudar a melhorar nossa sociedade. Não digo para que as mulheres passem a agir como homens ou que os homens tratem mulheres como se fossem homens, mas que as tratem como Seres Humanos e não como objetos para fins reprodutivos.

Num país medíocre e patriarcal como o Brasil as mulheres ainda não possuem domínio sobre seus próprios corpos, são mal vistas quando ocupam cargos de poder e ainda são obrigadas a terem dupla jornada de trabalho (trabalho formal e trabalho doméstico, como limpar a casa e cuidar da prole), pois os supostos “homens” são “superiores” demais para ajudarem suas esposas e tais seres ainda se consideram “machos” e se acham no direito de dizer que amam “suas” mulheres. Bom, quem ama cuida e ajuda. Quem realmente ama não transforma a pessoa amada em escravo serviçal.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Morra liberdade

Como uma bela princesa
Presa em suas cordas
Marionete sem jeito
Pendurada em sua morte
Deformada pelo tempo
A poeira se acumula
Sobre o sangue já seco
A corda principal em seu pescoço
Enforcada, mutilada, despedaçada
Seu trono é um vaso sanitário
Para onde escorrem suas lágrimas
Ao redor de seu trono
Um belo tapete vermelho
Composto de teu próprio sangue
Dance, princesa, dance!
A forca está te apertando?
Procure o ar que foge
Suas garganta se fecha
Teu colar de corda
Pressiona teu lindo pescoço
Liberdade é mera ilusão
Está presa em teu reino social
Uma forca pelo amor
Vamos admirar a tua dor

Para acompanhar...
Xasthur

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

ANTROPOPHAGYA

Aos leitores
Está disponível para venda no Clube de Autores, o meu livro ANTROPOPHAGYA.
São 230 poemas que vão da morte a vida, do amor ao ódio.
http://clubedeautores.com.br/book/11212--ANTROPOPHAGYA

domingo, 3 de janeiro de 2010

Retrato Fúnebre

Cortando os pulsos
Com a navalha afiada
Sinfonia da morte
Cascata de sangue
Tinta para o artista
Pintura sacra da morte
Auto-retrato fúnebre
Abrindo fendas na carne
Rasgando a vida
Destruindo sonhos
Procurando a escuridão
Viajando para o fim
Para o lago de fogo
Tão frio
Congela todos os pensamentos
Traz a palidez da morte
Apaga a chama da vida
Esfria o calor humano
Decompõe a matéria

Para acompanhar...
Dissection - In the cold winds of nowhere