domingo, 25 de agosto de 2013

A salsicha, o milho e a morte

"A salsicha, o milho e a morte" é um conto integrante do livro Necrophagya, de Marius Arthorius. Disponível em: http://clubedeautores.com.br/book/32051--NECROPHAGYA




Acordou com uma tremenda dor de cabeça, um gosto horrendo em sua boca, um pedaço de casca de milho ainda presa entre os dentes, havia dormido no chão da cozinha e nem mesmo se lembrava desse acontecimento. Sentou-se no chão, estava nu, tal como veio ao mundo. Porém sua pele estava suja, coberta com uma estranha e fétida substância marrom, algumas partes com um líquido vermelho. Um longo verme esbranquiçado nadava para sobreviver em meio àquelas duas substâncias. Levantou-se, no fraco reflexo que se formava no vidro da janela da cozinha, conseguiu ver que sua boca estava toda suja com aquela substância marrom. E vomitou, pois começava a se lembrar de tudo. Vomitou no chão da cozinha e logo caiu sobre os próprios joelhos. Enquanto seu esôfago era queimado pelo ácido estomacal diluído que lhe escapava pela boca e lágrimas lhe vertiam dos olhos com o ardor.

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Na noite anterior tudo estava tranquilo. Ele tinha convidado ela para jantar em sua casa, apenas um cachorro-quente, molho vermelho com bastante cebola e milho para acompanhar. Preparam juntos a refeição, o lindo casal de pombinhos que preparavam juntos seu alimento. Sentaram-se a mesa e começaram a comer. Discutiram Nietzsche, Popper, Sagan e Schopenhauer. Mas todo alimento chega ao seu fim.
Havia ainda na panela apenas uma salsicha e uma porção de grãos de milhos imersos no molho acebolado. Ambas as duas pessoas presentes na cozinha ainda estavam tomadas de fome e os dois tentaram se apossar da última salsicha ao mesmo tempo. Quando possuído de fome todo humano passa a ser dominado pelo egoísmo adormecido de nosso caráter.
Ele e ela se entreolharam. Não era amor que havia em seus olhos, e sim, o mais puro sentimento humano, o sentimento que pulsa constantemente nas profundezas neurais de nossos pútridos encéfalos. Era o egoísmo que brilhava e reluzia em seus olhos, querendo se tornar livre e dominar aqueles corpos, extinguindo qualquer resquício de moralidade que pudesse existir na mente daqueles macacos pelados. Pois bem sabemos que toda pessoa não passa de um símio com poucos pelos.
Cada um fisgou a salsicha com seu garfo, e puxou para seu próprio lado. Despedaçaram o estranho pedaço de carne rosada. Novamente se encararam. Urraram uma para o outro como dois animais famélicos.
- Sou mulher – disse ela - Seja um bom cavalheiro e me deixe ficar com a última salsicha.
Houve mais um momento de tensão entre os dois, tempo para que a razão dominasse o egoísmo, ou, tempo para que o egoísmo planejasse alguma de suas artimanhas. Tomado pelo feminismo radical que por vezes não prega a igualdade entre os sexos e sim a dominação feminina sobre os homens, ele acabou por entregar a última e tão preciosa salsicha para a sua companheira.
Ela pegou um pedaço de pão, colocou a salsicha arrebentada sobre ele, despejou o resto de molho com cebola e milho. Devorou o cachorro-quente de forma violenta, fazendo molho vermelho sujar sua camiseta. Incitava a delícia da alimentação para deixar ele com mais vontade de possuir a valiosa salsicha. Ela terminou de comer.
Após comer lambeu seus dedos e soltou um grotesco arroto.
Mas o cavalheirismo dele não demorou a ser tomado pelo egoísmo humano, ele queria voltar atrás, queria mudar sua escolha. Queria mudar o passado e usufruir seu livre-arbítrio. Ele tinha liberdade de escolha e faria uso dela, mesmo que as consequências estivessem num ponto fora do alcance legislativo e além da compreensão das mentes comuns.
Ele levantou-se e foi até a gaveta da pia, pegou uma faca. Voltou-se para ela, que estava sentada de costas para ele. Andou até ela, pegou-a pelo pescoço. Obrigou-a a deitar-se sobre a mesa.
- Chegou a hora querida! Direitos iguais para todos, esqueceu-se do que as feministas proclamaram? A salsicha não pertence apenas a você! Ela é minha também e aqueles milhos, espero que eles ainda estejam inteiros em seus intestinos. Agora é hora de fazer a partilha do pão, nesta Santa Ceia que partilhamos. – ela começava a sufocar com a pressão da mão dele em sua garganta.
Cravou a faca na barriga da mulher, logo abaixo do osso esterno e direcionou o corte até o umbigo dela. Ela desmaiou com a dor e não veria a própria morte, pobre moça, perdeu a felicidade de ver a própria morte, o momento mais caloroso, único e especial de nossas vidas mundanas! O momento em que deixamos de ter qualquer preocupação. Abriu o abdômen dela em duas metades, dois bifes suculentos que pendiam para cada lado do corpo feminino, revelando toda a beleza interior que havia nela.
E lá estava! O estômago e os intestinos! Ele puxou para fora aqueles órgãos quentes recheados de farto alimento. Com fortes dentadas rasgou aqueles tecidos, chacoalhou pelos ares o conteúdo deles até que encontrou. Ainda estavam ali, os pedaços mastigados de salsicha e os grãos de milho. Pegou seu alimento e ingeriu-os. Sujando-se com toda imundície humana. Saciando seu egoísmo e proclamando seu livre arbítrio.