terça-feira, 29 de junho de 2010

Vivissecção

Vinde a mim, ó desgraça funesta. Arrebente meu corpo com a gadanha que tu carregas. Taxidermize meu corpo, impregne ele com o sal que colocamos dentro da pele dos animais eviscerados que serão empalhados. Faça a precisa incisão inicial abaixo do meu tórax, arrastando a lâmina até minhas genitálias, separe a pele da carne. Preserve meu couro para a posteridade. Pois é com a aparência externa que as pessoas se importam. Destrua tudo que há dentro de mim. Preencha minha pele com macio algodão, sustentado por maleável arame de metal. Assim meu interior será agradável para todos.
Arranque meus olhos, pois eles são as janelas da alma. Através deles demonstramos os sentimentos de nosso encéfalo, sempre oculto na caverna craniana. Forneça para mim olhos de vidro. Que nada demonstram além do olhar vago e insensível de uma criatura morta. Para que assim eu não chore mais pelas paixões perdidas, pelas palavras não ditas e pelos momentos de alegria que ficaram no passado. Assim tem-se o protótipo perfeito do estereótipo social. Um ser que nada sente e que com nada se importa.
Aqui eu me encontro. Com todos estes objetos afiados em minha frente. Frio metal que dilacera a pele humana, como frias palavras que dilaceram os sentimentos humanos. Trazendo-nos as incertezas que se ocultam em todas as partes da vida. Viver é como andar em uma corda estendida sobre um abismo. Seguimos em frente, tentando manter o equilíbrio, rumo ao futuro. No entanto, basta um pequeno erro para cairmos na escuridão abissal. E dela não há mais retorno. Pois nenhuma mão poderá te alcançar, quando com a morte você se encontrar.
Os pregos com os quais agora me perfuro em autoflagelo, fazendo-os romperem a imaculada estrutura de meus ossos, rompendo barreiras rígidas e ocultas de osteócitos e osteoblastos. E talvez até dos osteoclastos. Numa vã representação da dor que assombra minha consciência. Destruindo minhas memórias como se eu tivesse caído nas garras de um parasita indomável. Para o qual eu represento apenas um banquete carnal a ser calmamente devorado. O rubro sangue escorre por inúmeras perfurações espalhadas em meu corpo. Libertando os eritrócitos antes aprisionados em minhas veias e artérias, livres para se encontrarem com alguns leucócitos. Livres para trazerem a morte para perto de mim.
Pudera arrancar todo e qualquer sentimento que verte através das conexões dos neurônios que compõe meu cérebro. Livrando a mim mesmo de sentir qualquer coisa triste ou feliz. Apenas vivendo, alheio e independente de tudo. Em uma cirurgia cerebral e corporal devo interligar meu consciente ao subconsciente, e assim, poder purificar meu corpo através do colapso de minha epiderme. Devo arrebentar meus músculos, como se os sarcolemas fossem devorados por um verme. O nematóide que destrói o antropóide.
Com a faca afiada, despedaço meus dedos. Um a um, separando cada falange. Dissecando cada nervo e tendão. Cortes rápidos e certeiros. Ignoro a dor, pois ela não se compara ao desespero que se instala em minha mente. Dividido na eterna dualidade que freqüenta toda pessoa, dividido entre a vida e a morte. Entre a perda e a rejeição, tudo vira aflição. Percebe-se que felicidade é mera ilusão. A corda da vida oscila fortemente, desgastando-se e quase arrebentando. Mas não é o suficiente, muito mais deve ser feito. Pois a loucura ainda não me encontrou. Dela eu dependo para que talvez eu desfrute da felicidade. Um escape da realidade.
Ainda usando lâminas afiadas, inicio a retirada de minha pele. Como se fosse uma simples veste que oculta a real natureza humana. Que oculta toda a nossa ancestralidade evolutiva. E é essa aparência que quero libertar. Somente assim poderei em paz descansar. Arranco-a lentamente saboreando a descoberta do desconhecido. Tornando minha beleza interior algo conhecido. Sem minha pele para me proteger, sinto quão gélido, frio e cruel é o mundo. Indiferente perante nossa presença animal. Meu corpo, agora vermelho, apresentando nossa cor interior. Como a pele de um demônio imaginário. Estremece perante o sopro do futuro. Emanado de algum dragão que se oculta no abismo que vejo abaixo de meus pés. O abismo da morte, no qual poderia finalmente encontrar a loucura. Meu corpo entra em espasmos devido às tormentas do passado. Seguro-me fortemente na corda vida, para não cair antes do devido tempo. Para não morrer antes do derradeiro momento. Pois a libertação deve ser finalizada. Para que a morte possa ser cruamente aproveitada.
Perco o controle sobre meus músculos. Com esse acontecimento, o conteúdo de meus intestinos escapa, deslizando sobre minha pele, esquentando minhas pernas. O adorável cheiro humano que está sempre perfumando a sociedade. Que demonstra o quão ridícula é nossa presença, apesar de todas as máscaras de importância que tentamos criar.
É necessário raspar a carne que envolve meus ossos. Assim aliviando o peso que há sobre mim. Pedaço por pedaço vou retirando-a. O colapso dos nervos que impulsionam os sinais de dor até meu cérebro. Deixando-o imerso em profunda confusão. Despedaço meu corpo, semelhante a qualquer outro pedaço de carne. Tudo para ter um segundo de tranqüilidade, esquecendo o desespero solitário que está enraizado dentro de mim. Sugando todas as minhas forças e vontades. Os sonhos se desfazem perante a doce ilusão da realidade. Realidade que eu percebo através de meus sentidos que facilmente podem ser enganados para ver tudo distorcido.
Esse barulho infernal que ouço, seria o barulho que a verdade produz em nossas mentes? Ou seria o barulho da dor representada através de meus gritos desesperados? Ainda tenho forças restantes. Com uma longa agulha perfuro meus ouvidos, faço o metal adentrar na escuridão de minha caverna craniana. Uma pequena dor para se obter o silêncio enlouquecido dos que foram eternamente esquecidos. Continuo a gritar, sinto a vibração de minhas cordas vocais. Faça o desespero parar! Pois se você for amar, então também poderá chorar. É o maldito risco que todos encontram quando tentam arriscar.
A mesma agulha que usei para perfurar meus ouvidos, uso para costurar meus lábios. Não sem antes arrancar a minha língua. Ela tenta escapar de minhas mãos como se tivesse vida própria. Nada que um alicate e uma tesoura não possam resolver. Está feito. Em minha frente a estrutura que permitiu que eu descobrisse os sabores do mundo. Sangue se mistura com saliva em minha boca. Engulo essa sacra mistura, como alguém que tenta engolir o choro do sofrimento. Sempre há um pouco mais para ser engolido. Já que o sofrimento é o peso que nos afoga rumo as entranhas da terra.
Quando encontrar a morte, vislumbrarei o que havia antes da vida. A escuridão. O silêncio, a ausência de sentidos e de imaginação. É a escuridão que se encontra antes e depois deste pequeno lampejo que chamamos de vida. E o que fazemos para aproveitar tal lampejo? Transformamo-nos em escravos. Escravos do dinheiro. Do sistema econômico sem o qual não conseguimos viver. Inusitadamente, o que nos permite viver é justamente o que nos impede de aproveitar a totalidade da vida. Não podemos comer papel, mas é ele que nos mantém vivos.
Mesmo com os sentidos destruídos ainda sou atormentado. Pelas lembranças da felicidade que não mais existe. E que agora não voltará a existir. Pois a corda da vida está se desfazendo. Não tenho mais forças para mantê-la. Preciso parar. Não sei como voar, para que do abismo eu possa escapar. Sei apenas caminhar e quase me arrastar. Através deste caminho no qual ninguém me ajudará. Não há como continuar. Com a fria lâmina que tanto trabalhou neste dia, que agora se encontra aquecida pelo meu sangue, irei partir meu coração em definitivo. Para não mais se recuperar. Cravo-a em meu peito. Lentamente rompendo todas as estruturas restantes. Deslizando rumo ao meu músculo cardíaco que se debate como um animal aprisionado que busca liberdade. Enquanto lágrimas dançam insanamente em minha face.
Desculpe Vida, sei o quanto tu és valiosa. Não quero depreciar sua presença, para mim você está acima de todas as coisas. Somente pelo seu valor eu já abnegaria prontamente a presença da Morte. Mas se neste caminho eu for obrigado a estar na presença da Solidão e da Escuridão, então prefiro encontrar estas duas na presença da Morte. Afinal, ela é o local de onde nós viemos.

Marius Arthorius

Salahtiel

Escrito em conjunto com o escritor Márson Alquati.

“Quem esquece os erros do passado, está fadado a repeti-los.”

O sol iniciava a sua atividade, surgindo ao longe, no horizonte distante e começando a iluminar a imensidão da planície descampada. Nada além de terras vazias e desprovidas de qualquer forma de vida, até onde os olhos podiam enxergar. Uma fina camada de gelo recobria o solo árido, refletindo o frio da noite anterior. O antigo guerreiro de asas negras arrastava-se solitário e reflexivo, em direção ao sol nascente. Assim vinha se orientando durante toda a sua atual vida. Qual mariposa desgarrada que se orienta seguindo a lua, ele o fazia, perseguindo dia após dia, o astro-rei.
Carregava, embainhada na cintura, a espada, cuja lâmina maculava-se com o sangue coagulado e pútrido de seus inimigos. Sua armadura, outrora prateada e lustrosa, agora se ressentia, amassada e suja de terra e sangue. De terras distantes e do sangue dos inimigos e amigos, mortos brutalmente em uma cruel e sangrenta batalha. Todos se foram. Sozinho ficara. Sim, era o único remanescente de seu povo. E agora rumava decidido ao encontro da derradeira batalha. A última a ser travada em sua breve vida. E a Morte, aquela inexorável e sombria dama revestida de negras roupagens e sua implacável foice o rondavam, dançando ao seu redor e zombando do triste fim a que estava condenado.
O triste fim de não ter um fim.
As melancólicas lembranças dos gritos de horrores que emergiam das profundezas viscerais das pessoas com as quais convivera a sua vida inteira permaneciam gravadas em sua memória. Gerações inteiras surgiram e desapareceram, enquanto seguia amaldiçoado a vagar pela superfície de um mundo infestado de necroses e morte, dor e sofrimento, situado além das leis de imposição do tempo e do espaço, sem que jamais conseguisse alcançar o seu momento final, sem que pudesse receber o seu merecido descanso.
Embora muitos contestassem tal afirmação, a vida eterna, pelo menos para ele, não era uma dádiva. Mas uma terrível maldição, em que a morte não era encarada como um ato nefasto, e sim, a almejada conclusão de um ciclo, ao qual, todos eram destinados. Todos os que um dia o guerreiro alado amou e agora se foram, ceifados do tabuleiro, definitiva e inexoravelmente excluídos do jogo. Todos menos ele. Um ciclo completo que se findava a cada nova geração. Ao princípio, a solidão parecia atraente, tornando-se, em determinados momentos, uma excelente e aprazível companheira. Entretanto, quando se permanece por um longo período na solidão, descobre-se que esta pode se tornar demasiado monótona.
Imerso apenas em seus próprios pensamentos, a loucura se encontrava atrás de cada porta, de cada pedra ou árvore por onde ele andejava. Passou, então, a ansiar pelo fim de sua própria existência. Que a sua combalida consciência deixasse de existir. E, com ela, toda dor e sofrimento, impostos pela inevitável e sádica passagem do tempo.
Andando pelo gélido deserto, acompanhado das três damas que todo ser vivo teme: a Morte, a Loucura e a Solidão, três irmãs que, fatal e infalivelmente, conduzem ao mesmo caminho, não tardaria para o guerreiro atingir o primeiro patamar rumo aos seus objetivos de vingança. Finalmente, a ansiada paz poderia ser alcançada. Porém, para isso, sangue culpado e também inocente deveria ser derramado, uma vez que em batalhas como a que estava prestes a travar, não existiam inocentes. Todos eram culpados, portanto, mereciam ser executados!
De repente, a voz da consciência emerge na obscurecida mente do guerreiro andante e o faz perceber que, por inúmeras vezes, as pessoas em geral, deixam-se levar, seguindo as caudalosas correntes da vida, guiadas por pensamentos fantasiosos, quase sempre forjados pelos próprios erros e experiências. Com ele não havia sido diferente. Apenas acompanhava o curso do tenebroso Rio Destino. Sofrimento e dor foram elementos sempre presentes em sua desgraçada vida, mas agora tudo isso estava prestes a mudar. Assim seguia o guerreiro, refletindo sobre sua jornada terrena, consciente de que a sua única certeza era a vingança.

* * * * *
Muito tempo antes...
Uma sangrenta guerra inter-racial entre anjos e demônios corria solta, devastando o mundo em que ambos viviam. Ninguém mais lembrava como havia começado. Ninguém se importava. O sangue e a espada, o ódio e a lança falavam mais alto. A guerra já se estendia por incontáveis séculos, dizimando ambas as raças até que restassem somente uns poucos milhares de soldados em cada facção. E, intencionados em ultimá-la, os demônios haviam iniciado uma gigantesca ofensiva contra o território dos anjos. A batalha fora terrível e só uns poucos representantes celestiais haviam sobrevivido às hordas do mal.
Foi ao raiar de uma manhã ensolarada. O acampamento dos anjos ainda dormia quando foi subitamente invadido e totalmente dizimado. Os anjos nada puderam fazer para impedir que as suas mulheres e crianças fossem chacinadas. Ninguém foi poupado.
Após derrotar o inimigo em mais uma violenta batalha em terras distantes e vencer a distância da longa viagem através das montanhas e vales, acompanhado de seu batalhão, o líder da gloriosa raça dos anjos, Salahtiel, finalmente alcançou os limites do acampamento-cidade de seu povo. E o que contemplou, remeteu-o, no mesmo instante, às profundezas do mais nefasto e cruel Inferno. O terreno, outrora composto por exuberantes campos dourados de trigo, dançando acariciados pelos doces ventos e entremeados por límpidos córregos de água cristalina, no momento, era uma terra enegrecida pelo fogo, que ainda mantinha a sua fumaça estagnada no ambiente. Uma névoa obscura que pairava a pouca altura, tentando inutilmente ocultar os horrores da guerra. Uma devastadora e nefanda guerra...
Cadáveres, de anjos e demônios, jaziam espalhados por todas as partes, entremeados por um verdadeiro mar de sangue e vísceras. O dourado do trigo ressentia-se de vermelho e azul. O sangue dos demônios e o dos anjos. Corpos mutilados, estraçalhados, despedaçados. Vidas abreviadas. Sonhos interrompidos.
O ódio tomou conta dos recém chegados. E um incontrolável desejo de vingança foi crescendo dentro de cada anjo ali presente. Ainda era possível ouvirem o som lamuriante e desesperado dos desafortunados compatriotas moribundos, lutando para se manterem vivos.
E, completamente obliterados pelo ódio e pelo desejo de reparação do mal, partiram ao encalço do inimigo. Não tardou para avistarem-no. Ao comando de Salahtiel, o batalhão angelical dividiu-se em dois grupos. E, separados, simultaneamente arremeteram-se sobre o amaldiçoado exército demoníaco, cercando-o, prontos para atacarem pelos flancos, como as pontas de um alicate que se fecham sobre o dente a fim de extraí-lo.
Munidos de seus enormes escudos retangulares, espadas, arcos e lanças empunhadas, avançaram sobre a terra queimada e caíram ferozes sobre as tropas infernais. O embate que se seguiu foi cruel e desigual. Eram apenas cem anjos contra milhares de demônios. Mesmo assim, ao final do embate, todos os soldados do Inferno, sem exceção, haviam tombado sob as lâminas azuladas das armas angelicais. E, só então, Salahtiel percebeu que todos os anjos também. Só ele havia sobrevivido. O último representante de sua raça.
Foi quando ouviu um gemido curto e abafado aos seus pés, seguido de mortiça voz. Era o líder daquele batalhão de demônios, conjurando uma maldição contra ele. Trespassou o coração do sujeito, mas não evitou o mal conjurado.
Desde então, ele que não tinha mais razões para viver, tornara-se imortal.
Imortal e solitário. Imortal e infeliz.

* * * * *
De volta ao deserto...
Acabara de eliminar o último representante da raça dos demônios e agora partia em busca do próprio destino. A última batalha estava prestes a ser travada.
Gerações e gerações haviam transcorrido desde que fora amaldiçoado pelo líder dos demônios. Condenado a vagar até os confins do mundo caçando àqueles que haviam trazido a desgraça ao seu povo.
Para ele, tão amplamente condecorado no passado pelas vitórias dos anjos, medalhas não mais possuíam valor. A única medalha que Salahtiel desejava era a da redenção.
Redenção só possível de ser alcançada com a Morte. E esta, para ele era impossível e inalcançável. Contudo, restava uma vã esperança. Uma remota chance de mudar os inexoráveis rumos do destino.
Chegou a um desfiladeiro que desembocava num precipício que não se podia ver o fundo de tão escuro e insondável que era. Aproximou-se da beirada e espiou. Só viu trevas e escuridão. Hesitou, lembrando-se do seu povo, dos parentes, amigos e companheiros de armas, da mulher e dos filhos mortos durante a invasão ao acampamento-cidade.
Só teria uma oportunidade. Se falhasse, tudo estaria perdido. Inspirou profundamente, procurando reunir a coragem necessária. Fechou os olhos e, sem medir as conseqüências dos seus atos, avançou para o vazio, sendo engolido por ele.

* * * * *

Porém, algo deu errado. E, ao acordar, Salahtiel percebeu que não só não havia morrido, como se encontrava agora, em outro tempo e noutro mundo, habitado por criaturas inferiores, primitivas e frágeis, carentes de alguém que as auxiliasse em sua evolução. Compreendeu que ele era o guia e que guiá-las seria o seu castigo eterno. Resolveu, então, fazê-lo pelas sombras. E, ato contínuo, alterou o próprio nome, por outro, mais condizente com a sua nova condição de portador e guardião da luz, além de carrasco dos ímpios e dos de má índole.
E, desde então, Lúcifer, o anjo caído, vive entre nós...

Marius Arthorius

Insânia

Olhe em algum relógio, que horas são? Em seu colo ele carrega um afiado machado. Quantos já não provaram deste metal gelado. Cada dia uma ferramenta, cada dia uma vida que ele atormenta. Viajando de cidade em cidade, sempre durante a noite. Mas ele não é um vampiro e nem nada sobrenatural, é muito pior, é humano, Homo sapiens. Ele sabia e ainda sabe que a realidade pode ser bem mais cruel que a ficção da imaginação. Ele nem se lembra quando começou com esta carnificina toda. Só se lembra que o gosto é bom e a carne é macia. Ele apenas gosta do escuro, com tantos recantos obscuros para esconder e observar, finalmente matar. Que horas são? Falta pouco, muito pouco. Ele só quer saciar a sua fome, o estômago está inquieto. E a imaginação voa rapidamente.
Se o populacho quer cerveja e futebol, ele quer sangue e dor. Como qualquer outro, um fanático espectador. Buscando pelo seu pão e seu circo. O desejo de todo povo! Preferem escapar da realidade, deixarem o governo manipulá-los, mas não trocam seu pão e seu circo por nada. E ele também busca sua diversão. Onde ele está? Está em sua cidade. Estripando e devorando algum desavisado. Bebendo sangue em cálice de ouro e comendo carne bem passada, cuidadosamente preparada. E muito bem temperada. Pode ser que ele esteja do outro lado da porta de sua casa ou te observando pela janela. Experimentando teu cheiro, excitando-se com tua face de medo e horror. Que horas são? Hora de comer! Ele está com muita fome. Anseia por esquartejar teu corpo, enquanto você grita e se contorce em agonia, chamando pela sua deidade, apenas para saber que nenhuma ajuda virá para atender suas preces.
Ele quer seu sangue doce como mel. Amarrar você e rasgar sua pele e tingir-se com o vermelho de teu sangue. Não chores, talvez ele arranque alguns de seus dentes para confeccionar um colar que poderá ser enviado de lembrança para seus familiares. Seu crânio enfeitará a estante dele, segurando alguns livros sobre anatomia humana e culinária. Que horas são? Hora de você sofrer, é hora de você morrer. Com o machado você conhecerá o real significado da palavra dor. Tu verás teus ossos sendo partidos com violência e precisão. Tu descobrirás que em apenas alguns minutos uma pessoa pode desejar estar morta há anos ou desejar nunca ter nascido. E você será a refeição perfeita, ninguém sentirá tua falta, pois em tua vida, tu foste apenas mais um na multidão. Tu que anseias pelo sangue destas palavras! Tu serás o grande banquete!
Que horas são? Quem é ele? Tu ainda me perguntas? Pergunta-me e eu te pergunto, todos tem perguntas? Se não queres pergunta, cale-se e diga “amém”. Ele é eu e eu sou ele. Apesar de que não me lembro dele. Nada fora do normal e agora? Venha para fora! Deixe-me terminar, sim, terminar de afiar meu lindo machado para te cortar, abastecer o carro e comprar os temperos. Eu quero você e ele quer você, porque eu sou ele e ele sou eu ou ele é eu? Quem se importa? Esta será tua última preocupação! Espere-me em tua casa esta noite, mas espere-me de portas trancadas, assim podemos nos divertir um pouco antes do jantar. Estou salivando por sua imaculada carne, pensando em todos os pratos que prepararei para nosso jantar. Estou nervosamente ansiando com a expectativa de te comer (literalmente).

Marius Arthorius

Louvor à Lua Cheia

A escuridão já dominou o dia. A lua cheia ilumina a paisagem com sua claridade prateada. Os seres viventes escondem-se em suas tocas, apenas os mais corajosos ou os mais temerosos se aventuram nos recantos da escuridão. Os predadores deixam suas tocas e avançam procurando pela caça, certos de que triunfarão. Pelo alimento e pelo prazer de matar. Ter em suas mãos a opção de escolha, decidindo quem vai viver ou morrer, o que melhor desejar.
São nessas noites que sou atormentado por intensa dor de cabeça. Preferiria esmagá-la com uma marreta do que sentir tamanha dor. Ver meu cérebro diluindo-se e espalhando-se pelo ar após um golpe certeiro. Poderia ser melhor do que esta dor que emana de minhas profundezas encefálicas. Se assim o fizesse, a dor acabaria. Infelizmente a dor é um justo preço a se pagar pelo prazer. O prazer das caçadas. De ser um predador.
Pois após as dores intensas de minha cabeça é que ele surge. Domina minha mente. Ele, aquele que se oculta dentro de todo ser humano. O animal selvagem que tentamos ocultar. Nossos instintos assassinos que nos mantém ligados ao mundo natural. Durante os dias normais permanece oculto sob o manto da consciência. Então, surge a lua, bela e reluzente. Divino encanto que toma conta de meu corpo. Doce amada tão distante nos céus. Para você dedico todos os meus sacrifícios, para você destino todo o sangue derramado e a carne devorada. Todo corpo violado, todo coração despedaçado.
Recordo-me da noite anterior, cada momento gravado em minha mente. Cada segundo parecia uma eternidade. Saí de casa, iluminado pela minha doce amada observando-me do alto, imaculada no céu. Respiração ofegante, um misto de odores atrativos, escolha seu prato e sirva-se. Perambulei pelas ruas andando pelos recantos obscuros. Corpo curvado e oculto, um predador espreitando suas presas. Observando, analisando, escolhendo qual seria o prato principal. Só de lembrar do sabor da carne em contato com minha língua já começo a salivar. Meu corpo todo estremece, um rugido surgiu das profundezas de meu corpo. Alto e feroz, ecoou pelas ruas da cidade semi-adormecida. Meu corpo não parece mais o mesmo. As roupas parecem me aprisionar, livro-me delas. Sinto a liberdade. Livre das vestes sociais que aprisionam a todo cidadão. Livre como vim ao mundo. Sem roupas e sem crenças. Um animal como qualquer pessoa, apenas vivendo.
Distante no meu campo de visão ela surge. Vindo em minha direção. Andando apressada na escuridão da madrugada. Vislumbro a lua, minha amada. Esta seria seu sacrifício. A batida dos sapatos dela na calçada ecoam pela rua vazia. Barulho constante e regular. Cada vez mais próximo. Permaneço oculto nas sombras, tal qual governante que manipula seu povo. Mais próxima ela está, sinto seu cheiro. O medo exala dos poros de sua pele. Aroma incomparável, o perfume mais atrativo que alguém poderia querer. O medo dos covardes e dos corajosos, sentimento que nos mantém vivos. Mas para ela o medo não seria o bastante. Não a ajudaria em nada.
Em minha frente ela está, pulo sobre ela, como um lobo pula sobre um coelho. Derrubo-a no chão. Ela tenta se livrar de mim. Seguro sua cabeça com minha mão, e faço seu crânio encontrar o rígido chão. Apenas o suficiente para a inconsciência dominar seu corpo. Carne viva é disso que preciso. Carne fresca e sangue quente. Vísceras pulsantes. Arrasto-a para o recanto obscuro de um terreno vazio. O local perfeito para fartar-me e saciar minha fome, completando o vazio que se apossou de meu pútrido encéfalo. O corpo inconsciente em minha frente, com respiração ofegante, tudo será como antes. Deixo-a desnuda, livre das vestes, cheiro a carne fresca. Olho para sua face, um filete de sangue escorre de uma das narinas. Lambo e degusto o sabor deste delicioso líquido vermelho. Fluido agradável que me embriaga e me entorpece. Dedico a você, lua, minha amada. Tão pálida e distante no céu. Abaixo-me sobre o corpo inerte. O rugido verte de minhas entranhas e é emanado por minha garganta.
A vítima acorda. Olha para mim assustada. Como se tivesse visto um fantasma. Ou talvez um monstro. Não sou nenhum, nem outro. Sou animal, sou homem. Lobisomem. Abocanho sua face, perfuro sua pele sedosa com meus dentes afiados. Que arrancam pele, carne e cartilagem. Desfazendo a maquilagem. Entre uivos, devoro-a pedaço a pedaço. Banho-me no líquido rubro. Perante o olhar atencioso de minha amada. Carne vermelha e sedosa. Suntuosa refeição. Arranco os membros, primeiro braços, depois pernas. Ação que me trás recordações internas. Arrebento seu abdômen, retiro os intestinos que se esfacelam e liberam seu conteúdo. Impregnando o ambiente com agradável odor, melhor do que tudo. Minha amada saciada está, e assim permanecerá. Até que outra vez apareça no céu, indicando que eu devo caçar, para que assim eu possa mais uma vez amar.

Marius Arthorius

Exorcismo social

Dedicado à Emili, pela companhia e conversas filosóficas.

A dor lacerante oriunda de seus pés, como se estivessem sendo repicados metodicamente. Deitado em alguma espécie de maca, fortemente amarrado. Os olhos vendados. Apenas sentia gélidos dedos percorrendo seu corpo. Lâminas rasgando sua pele. Podia claramente sentir que alguns pontos de sua pele haviam sido costurados fortemente. Sentia a dor irritante e constante de tais partes. Em que inferno de local estaria?
As vendas foram retiradas. A forte claridade do local ofuscava sua visão. Conseguia distinguir apenas uma forma humanóide observando-o. Levou algum tempo até perceber que a pessoa em sua frente usava vestes médicas. Vestes brancas, marcadas pelo contraste vermelho do sangue impregnado em diversas partes. Olhou ao redor. As paredes e o chão eram recobertos por pequenos azulejos brancos. Uma lâmpada fluorescente no teto irradiava a forte luminosidade branca. No chão havia sangue derramado por diversas partes. Ao lado da maca, uma mesa metálica com diversos instrumentos cirúrgicos. E, o horror, diversas partes humanas, amontoadas em uma bacia plástica.
- Onde eu estou? – indagou com uma voz trêmula o prisioneiro.
- Você está aqui. Não lá, apenas aqui. Não lhe convém saber a localidade. Pois essas informações são desnecessárias. – respondeu a voz fria por detrás da máscara médica que ocultava o rosto.
- Isso é um hospital? Eu sofri algum acidente? – perguntou o prisioneiro.
- Seu acidente foi nascer. Ser errante que se recusa a pensar. Tu és fruto podre. A putrefação é teu destino, para que então, a vida possa brilhar. – falando isso o médico empunhava seu fiel instrumento cirúrgico, um bisturi. – Aqui não é hospital, apenas se for um hospital para a sociedade. Indivíduos não são curados neste local, eu apenas liberto a sociedade de seu mal.
- Então por quais motivos estou aqui e o que você fez comigo? – perguntou o prisioneiro tentando libertar-se das amarras que o seguravam preso à maca. Cada movimento fazia surgir dor de diferentes partes de seu corpo. Cortes, lacerações e pontos costurados tomavam conta do que antes foi um corpo inteiro.
- Quero apenas que você compreenda tudo que seus atos originaram. Nada há após a morte, assim sendo, não há nenhum ser supremo que avaliará sua vida. Não há justiça divina. Faça você o bem ou o mal. Deve-se, pois, fazer o bem por saber que esta será a melhor convicção para se ter. Seus atos serão lembrados pelas gerações vindouras. E estas, poderão ser gratas a você, se você for bom. Entretanto, você foi mal. Ser irracional. Os piores crimes e atrocidades você cometeu. – falava o médico, curvado sobre o prisioneiro, enquanto uma marca de saliva tornava-se visível na máscara que ele usava. Rodava o bisturi no ar como um guerreiro com sua espada em combate. – Os crimes contra a mente das pessoas! Esses foram os seus crimes! Contra a liberdade individual e contra o livre raciocínio que toda pessoa tem o direito de ter! Pagarás por tais atos, ó aquele-que-ilude!
- Que deus tenha piedade de sua loucura, pois sou sacerdote. Sou os olhos e ouvidos de deus, proclamador das verdades. Se fizeres algum mal para mim estarás provocando o próprio deus – respondeu o prisioneiro.
- Tu és criatura cruel! Que assola a humanidade com suas mentiras fantasiosas de além-mundo!
- Seu louco! Solte-me agora!
- Louco?! – respondeu furioso o médico arrancando a máscara que cobria seu rosto, mostrando seu sorriso salivante de dentes perfeitamente brancos e reluzentes. Cravou o bisturi no umbigo do prisioneiro, fazendo sangue verter, arrastou o bisturi rumo ao tórax. Abrindo uma fenda vermelha e superficial na pele. Enquanto o prisioneiro se contorcia e chamava pelo deus que ele tanto havia louvado. – Sua divindade não responderá aos teus apelos. Da mesma forma como ela não atende aos chamados de milhares de crianças inocentes que morrem de fome todos os dias! Vítimas do sistema econômico. Tudo o que você fez foi juntar suas mãos e proclamar palavras ao vento, nenhuma ação digna para com a sociedade. Mais vale poucas pessoas trabalhando do que milhões e milhões ajoelhadas perante imagens, esperando que alguma salvação venha dos céus.
O médico fez mais uma incisão no tórax do prisioneiro, indo de um mamilo a outro. O prisioneiro gritava e debatia-se tentando escapar de seu castigo. Enquanto sua última refeição escapava pela sua boca na forma de vômito. Liberando no ar um característico odor azedo. O médico então trocou o bisturi por uma pequena serra elétrica. De lâmina esférica e giratória. O zumbido do motor de tal instrumento tomou conta da sala e o horror se apossou dos olhos do prisioneiro. O médico iniciou a abertura do tórax de seu paciente, as costelas tremeram, por um momento a lâmina da serra enroscou nos ossos. Um forte soco no tórax fez a lâmina soltar e seguir seu digno trabalho. Chuva vermelha, sangue jorrava e espalhava-se para todos os lados. Escorria sobre a pele do prisioneiro até a maca e desta para o chão. A roupa do médico estava tornando-se cada vez mais rubra. Gritos e mais gritos originavam-se da garganta do prisioneiro.
- Então criatura cruel, aquele-que-ilude. Que se apossa das mentes indefesas e impõe suas crenças. Não gostas da dor? A Dor, um dos mais puros sentimentos, originado pelos atos nefastos ou amorosos. Originado de danos físicos ou sentimentais. Sente-se dor ao perder a pessoa amada, ou ao estar longe da mesma. Sente-se dor ao cortar uma parte do corpo ou ao mutilar um membro. Quem conseguirá compreender sua ligação com os demais sentidos? Dor acarreta sofrimento. Felicidade? Somente para alguns tipos de loucos. Não que sejam poucos.
O sacerdote aprisionado balbuciava palavras sem nexo. Os olhos vagos e distantes, moviam-se rapidamente em suas órbitas. Golfadas de sangue saltavam de sua boca, seu tórax era um lago vermelho, um lugar que qualquer vampiro gostaria de banhar-se. O médico admirava sua obra de arte. As tonalidades de cores perfeitamente agrupadas, cenário artístico inconfundível.
- Será que alguma pessoa sentirá saudades de você? Talvez aqueles que venderam as mentes para você. Em troca de salvação eterna e reconforto ilusório. Pois temem que a morte esteja presente atrás de cada esquina. Talvez estes sintam sua falta. Ah! A Saudades, essa vil criatura nefasta, que age em companhia da Esperança. Duas senhoras malévolas que trazem tanta aflição para as pessoas. Se forem acompanhadas da Incerteza, então se tem o palco para que a Dor e o Sofrimento possam agir. Como entender tais criaturas? Pois se até a mais fria e calculista das pessoas já experimentou sentimentos em algum momento de sua vida. Tenta-se em vão ser como uma máquina, apenas agir, nada sentir. Que diferença fará? Se no final, cada um é apenas mais um animal. Então, nada melhor do que desfrutar dos mais variados sentimentos.
No lago de sangue do tórax do prisioneiro era possível perceber as oscilações ocasionadas pelos batimentos cardíacos. O corpo dele tremia por inteiro, movia a cabeça de um lado para o outro, gemendo e grunhindo. Lentamente asfixiando com os pulmões colapsados e o tórax arrebentado.
- Diga-me, criatura das trevas, desejas proclamar alguma palavra antes que seu fim chegue? – disse o médico enquanto deslizava sua mão protegida por luvas de látex sobre a testa do prisioneiro. Deslizando-a pela lateral da face, até chegar ao queixo, para então segurar firmemente a cabeça do prisioneiro. – Nada a declarar em sua defesa? Veja que sou benevolente, não agi como a sua inquisição, pois lhe dei uma chance de oferecer-me vossa opinião. Apesar das provas já indicarem que tu és um ser abominável. Fujam as pessoas da presença de teus semelhantes. Corram e gritem assustadas, pois o parasita mental está a caminho. Parasita que agora irá perecer.
Nenhuma palavra saiu da boca do prisioneiro. Apenas baixos gemidos, arfadas de um ser tentando encontrar o ar. Seus pulmões não mais funcionavam. O mundo tornava-se escuro para ele. Nenhum som, nenhuma sensação. Nem mesmo a visão do médico que tinha submetido-o a tal castigo.
- E nesta sociedade o que tu vê? Oculto, abaixo das sombras da escuridão dogmática, o que tu vê? O medo? A morte? Responda-me! Se ainda há um pingo de vida digna em teu corpo, pronuncie as palavras e não ouse dar gargalhadas! – no lago de sangue, as oscilações causadas pelos batimentos cardíacos tornavam-se cada vez mais lentas, com um intervalo de tempo cada vez mais longo. – Encontrou o teu futuro? Chegou até ele? Aqui no presente, ao qual estamos eternamente acorrentados. O passado se foi e novos momentos chegam a todo instante. Que venham os tempos do amanhã. O futuro cheio de incertezas semideterministas, originadas de nossos atos e escolhas. Influenciado por escolhas de outros. Nada a declarar?
O corpo do prisioneiro estremeceu em espasmo uma ultima vez, os olhos reviraram nas órbitas. A vida chegou a seu fim. Suor escorria da testa do médico, cirurgia de precisão inigualável. Não poderia perder a morte que havia em suas mãos. O artista interage com sua obra do início ao fim. Criando uma ligação especial e, por vezes, até sentimental. A obra médica estava quase finalizada.
- Devem-se temer as criaturas que se escondem debaixo do manto obscuro do futuro? – perguntou o médico. - Ou simplesmente seguir adiante nesta luta cruel e implacável, nascendo a todo dia que se inicia e morrendo a cada dia que termina. Um dia a mais na vida, um dia a mais rumo a morte. Assim é, assim foi, e assim será. Sou médico e como devo livrar a pessoa de seus males, jurei para mim mesmo que não deixaria nenhuma doença corromper as pessoas. Extirpando os cânceres da sociedade. Eis minha missão, pois sou artista da razão. Nenhum ser pútrido continuará a parasitar nossa insana sociedade, enquanto eu estiver aqui para com tal exorcismo mudar a mentalidade.
O médico colocou as mãos dentro do tórax cheio de sangue. Como alguém que lava seu rosto em uma bacia de água, assim ele o fez. Lavou seu rosto com o líquido vermelho que há dentro de todos. Refrescando-se com fluido vital, impregnando-se com cheiro visceral. O médico cumpriu sua missão.
Marius Arthorius

Desígnio Divino

Acordou ao ser banhado pelos primeiros raios de sol. A claridade o incomodava. A visão ainda estava turva, devido aos eventos da noite anterior. Pesadelo após pesadelo. Sonhos desconexos compostos por cenas infernais. Originadas de suas lembranças diárias. Mas não era ruim. Não. Para ele o sofrimento alheio era alimento para seu humor. A força vital pela qual ele tanto ansiava, podia ser facilmente encontrada no sofrimento.
A dor de cabeça era quase insuportável. Só seria de fato insuportável se ele não fosse apaixonado pela dama do sofrimento, a qual chamamos de dor. Sim, a dor! Imaculada sensação que faz com que nos sintamos vivos. Que reduz a tão grandiosa doçura da vida. Assim eram seus pensamentos. Melhor do que sentir dor era causar dor. Lamber a pele de uma pessoa trêmula, enquanto arranca lentamente as vísceras da mesma. Com mãos nada delicadas. Apreciando o odor emanado do interior de uma pessoa que ruma para a morte.
Seus olhos já se acostumaram com a claridade. Estava no interior de uma igreja. A sua igreja, construída com imensos blocos de rocha enegrecida pelo tempo. O altar de ouro ostentava imagens sacras, com detalhes dourados feito do mesmo material que o altar. Imagens de amigos imaginários que enfeitam as mentes das pessoas. Levadas pelo seu medo da morte e por receios diante das incertezas do futuro. Criam estes amigos para consolarem a si mesmos. Este era um pensamento que ele não podia se dar ao luxo. Pois ele era o sacerdote. As pessoas vinham até ele buscando por consolo para suas vidas supérfluas. Buscando explicações para o pós-morte e justificativas para os sofrimentos sociais. E aceitavam qualquer resposta por mais descabida que seja, pois o sacerdote ostentava uma imagem de autoridade. Ao conseguirem o consolo, criavam uma dívida para com o sacerdote. Que só poderia ser paga com sangue e submissão.
Ele olhou para fora, através dos vitrais da igreja. Viu que a fumaça ainda subia, oriunda do herege que havia sido queimado na noite anterior. Apenas mais um tolo, que questionou as supostas autoridades que dominam a sociedade. Pagou o devido preço. Como muitos pagaram e muitos ainda pagarão enquanto o tempo for tempo para a humanidade.
Uma vez que uma pessoa era acusada de heresia, não havia mais como escapar da morte. Podia apenas escolher, morte rápida ou lenta. Caso o herege confessasse o suposto crime, era imediatamente mandado para a fogueira. Pois os cânones impedem a igreja de derramar sangue. Caso negasse o crime, era torturado até a morte. Afinal, a negação nada mais é do que o “diabo” mentindo. E, para o acusado, a tortura em terra seria melhor do que as chamas eternas do inferno. As supostas autoridades não podiam estar erradas. Sendo assim, qualquer acusado era culpado.
Quem dirá um sacerdote, aquele-que-ilude, o porta voz da divindade inexistente. Este, jamais poderia ser contrariado. E até aqueles-que-governam, se submetem perante as tolas opiniões, que tanto atrapalham a sociedade, fornecidas por aqueles-que-iludem. Aceitam a opinião destes seres nefastos, sanguessugas de mentes, pois todos temem a única certeza absoluta da vida humana. A certeza de que a morte chega para todos.
E ali estava, o sacerdote, preparando-se para mais um dia de torturas e mortes. Santo trabalho. Torturando e matando pessoas inocentes, cujo único erro foi questionar e pensar. Tentaram ter mentes livres. Arrebentando as correntes dogmáticas que são impostas em todo integrante desta sociedade. Libertaram suas mentes. Infelizmente encontraram um fardo pesado. Mortes imersas em torturas. Sempre justificadas como desígnio divino.
O sacerdote desceu até o porão da igreja, passando por corredores obscuros, iluminados por fracas labaredas de tochas presas às paredes. Pessoas encontravam-se acorrentadas no porão. O choro lamuriante era a sinfonia do dia. Apreciem, pois o maestro acabou de chegar. Ele colocou seu crucifixo, fez o sinal da cruz. Foi até uma lareira com brasas acesas. Retirou deste lugar uma panela, cheia de chumbo fervente. Rumou para a pessoa mais próxima de si. Havia no mínimo uma dezena de prisioneiros. O mais próximo era um jovem que questionou a autoridade do padre durante a catequese. Pagaria agora por sua insolência. Ele estava firmemente preso. Mais dois sub-sacerdotes se aproximaram. Segurando a cabeça do jovem e mantendo sua boca aberta. Colocaram um funil em sua boca. O sacerdote então despejou o chumbo derretido direto na garganta do jovem. O cheiro de chumbo misturado com carne queimada logo tomou conta do ambiente. Magnífico aroma da purificação social.
Ele nunca mais questionaria as autoridades. Gemidos guturais foram emitidos das profundezas do jovem completando a tão esperada sinfonia da tortura. Ele tentava, em vão, se libertar. Debatia-se, tentava cuspir o conteúdo que encontrava suas vísceras. Dentro de si, ardia um inferno. Metal e carne se tornavam um só. Não tardaria para a morte alcançá-lo. As pessoas ali presentes choravam e gritavam. Temendo o horroroso fim que estava reservado para elas. Cada uma provaria uma tortura diferente. Purificadas elas seriam. Para conseguirem alcançar a eterna salvação de suas almas inexistentes.
Do lado de fora da igreja, uma multidão havia se reunido. Perante os gritos de dor dos hereges. A multidão ajoelhava-se e emocionava-se. Com o bom cumprimento das vontades “divinas”. Louvavam, sorriam e festejavam. Levados por suas crenças irracionais. Agradecendo ao sacerdote por “purificar” a sociedade. Livrando-as dos questionamentos que tanto assolam a mente humana, que poderiam fazê-las deixar seu conformismo e encarar as mudanças. E estas mesmo sendo positivas, acabam por assustar a sociedade.

Marius Arthorius

Antropofagia

Este foi o primeiro conto que eu escrevi...

As lembranças daquele sorriso iluminado pelo sol do meio dia. Imaculadas imagens fixas em sua memória. A cena repetia-se em sua mente enquanto deslocava-se por entre o pasto. Rumando de volta para a casa da fazenda. Os campos ora verdejantes, ora dourados se estendiam até o horizonte. Entremeados por pequenos capões de mata, em que as araucárias e o canto dos grimpeiros marcavam presença.
Em meio a tal paisagem paradisíaca. Cortada pelos gélidos ventos do inverno que se aproximava. Havia sido ali. O local escolhido para realizar seu ato tão sonhado. E aquele sorriso permanecia em sua memória. O último sorriso que ele teve oportunidade de dar em sua vida. Ela estava satisfeita. Saciada, pois um de seus mais profundos desejos haviam sido realizados. Em meio as lindas paisagens dos campos sulinos. Longe de tudo e de todos.
Tudo que restou do homem que um dia a amou, era aquele sorriso. Um grande e estampado sorriso, nada além disso em sua face.

. . .

Algumas horas atrás...
Passava pouco do meio-dia quando o casal resolveu sair para uma caminhada em meio aos campos após o almoço. Nenhuma nuvem no céu, apenas o sol forte e radiante. Emanando todo seu calor e radiação que faz a vida seguir seus infindáveis ciclos através das eras. Tempo além do que qualquer pessoa consegue imaginar de forma adequada. Devido a insignificância do curto período de tempo de vida que todos possuímos.
Andaram por mais de uma hora, de mãos dadas, inspirando o ar puro dos campos. Dançando entre o doce aroma das flores. Porém, sem nenhum motivo aparente, ela desmaiou. Caída no chão, inconsciente. Ele em desespero tentou ampará-la. Tudo em vão. Nada surtia resultados. A partir de tal momento, tudo na mente dela, passou ser acontecimentos incertos. Lembranças vagas. Pedaços desconexos de tempos passados. Oriundos da doce felicidade por ela experimentada.
Não demorou muito e ela acordou ouvindo aquele zumbido ensurdecedor, sua cabeça latejando. Parecendo que explodiria a qualquer momento. O mundo não mais lhe agradava. As folhas do pasto pareciam furar-lhe a pele como agulhas e facas. O sol parecia queimar sua pele impiedosamente. E o rosto dele, antes imaculado, olhando para ela. Agora parecia um cadáver em sua frente. Um pedaço andante de carne que deveria ser devorado.
Em seu rosto ele ostentava preocupação, buscando palavras para tentar consolá-la. Para ela, o som das palavras pareciam sinos ensurdecedores badalando em seus ouvidos. Arrebentando a estrutura de seus tímpanos. Ela berrou, e ele que estava abaixado ao lado do corpo dela. Acabou por cair sentado com o susto.
Ela continuou a berrar, afinal naquele local ninguém ouviria seus gritos. Deitada no chão, começou a arranhar seu próprio rosto. Cravando as unhas em sua própria face. Rasgando, dilacerando, rompendo as estruturas de sua pele. Demonstrando que por dentro somos todos iguais. Expondo o vermelho infernal que compõe nossos corpos. O sangue começou a escorrer. Tornando rubra as partes intactas de pele facial.
Ele tentava segurá-la, numa tentativa fútil de que ela parasse de ferir a si mesma. Tentando libertar-se do homem que tanto a amava, ela chutou suas genitálias e ele rolou para o lado. Lacrimejando, tamanha era a dor que emanava de entre suas pernas. Enquanto ele lamentava-se e xingava, a mulher levantou-se, com sangue gotejando de sua face.
O rosto profundamente marcado por arranhões. Olhava fixamente para o homem em sua frente. O homem que algum dia ela poderia ter amado. Entretanto, no momento, ela havia perdido o controle sobre si mesma. Libertando o animal descontrolado que existe dentro de todos nós. Ansiando por sangue e carne fresca. Um predador que espreita todas as nossas atividades. Oculto sob o manto da lucidez e da consciência. Assim o denominamos de instinto. Quando em liberdade chamam-no de loucura. E quem teria sã consciência de afirmar certamente o quê é a loucura. Se não nossos mais profundos desejos, enraizados na escuridão de nossas mentes.
Ela veio à fazenda visando dar continuidade ao seu tratamento psiquiátrico. E a única coisa que realmente fez foi abandonar o uso de seus remédios. Enganando o homem que a amava e que tanto preocupava-se com ela. E agora estava em meio a um surto psicótico, uma alucinação em que a mente domina o “eu”. Perdendo-se o controle sobre si mesmo. Libertando nossos demônios.
Ele recuperou-se da dor e levantou-se. Indagando-a se tudo estava bem. Para ele nada estava bem. Para ela, no entanto, tudo corria de forma maravilhosa. Um doce sonho de uma noite de verão. A mulher inclinou sua cabeça para a esquerda, lambendo seu próprio sangue. Sentindo o sabor de inicio doce e levemente salgado no final. Néctar da vida, regando nossos corpos. Encarou-o com um olhar vago, e após, inclinou a cabeça para trás. Olhando para o sol. O astro maior ao qual devemos nossas existências. A divindade materializada que todos os povos louvaram ao longo da história da humanidade, denominando-o de diferentes formas e criando diferentes seres para sua personificação imaginária.
Olhou para o homem novamente, que encarava-a assustado. Ela sorriu, demonstrando os dentes sujos de sangue, e ele retribuiu. No que ela rapidamente pulou sobre ele. Derrubando-o no chão.
- Seu maldito centurião! – gritou a mulher – Não irás invadir minhas terras carnais com seu corpo impuro.
Caídos no chão, ele tentava se livrar dela. E esta, cravou seus dedos nos olhos dele. Perfurando e esmagando os mesmos. Ele viu sua visão distorcer-se até sumir por completo. Quando uma dor irradiou de seus olhos. Ele urrou de dor, e acertou a mulher com um soco.
- Não me amas mais? – indagou a mulher – Esqueceu-se de sua promessa? De me amar na doença e na felicidade até que a morte nos separe?
- Sua louca! Veja o que você fez comigo! – ele estava ajoelhado, gemendo de dor. Com as mãos amparando os buracos em que encontravam-se duas massas inertes, que poucos segundos antes foram seus olhos.
Ele não percebeu a aproximação dela. Indo em sua direção com uma grande pedra nas mãos.
- Amor meu, em sua face reluz nosso amor. Sem tu não podereis viver. E dos prazeres ofertados por sua carne, vísceras e ossos, eu quero provar. – falou a mulher calmamente.
Ele virou o rosto na direção da voz. Ela então ergueu a pedra e acertou-o na cabeça. Fazendo-o cair lateralmente sobre as macias gramíneas.
- E agora, eu vos ofereço, fruto da minha carne e meu sangue. Comam e bebam, pois aqui está o messias. – falou a mulher enquanto gargalhava.

. . .

Ele acordou de sua inconsciência, pela dor de sentir seus braços e pernas serem quebrados. Gritou, chorou, esperneou. Nada adiantou. Não conseguia sair do lugar. Apenas escutava as risadas da mulher. Se ele ainda possuísse olhos, a cena que veria agora faria-o vomitar. Ela havia tirado as roupas do homem. E, ajoelhada ao seu lado. Curvou-se sobre o abdômen dele. Arrancando com a boca três nacos de carne das redondezas do umbigo do homem. Três rápidas e vorazes mordidas. Sangue rubro rapidamente flui pelos locais das mordidas. Enquanto ele tremia e gritava. Sem conseguir sair do lugar.
- Pois então, comeremos e beberemos de tua carne. – falou a mulher.
Ele gritava suplicante, e até suas cordas vocais começaram a falhar. A mulher com o rosto todo arranhado. Agora pintava sua própria face com o sangue que escorria do homem. Ela esfregava o rosto sobre as mordidas no abdômen dele. Por vezes, lambendo-as e beijado-as. Aprofundando sua língua na carne do homem que tanto a amava. Enquanto ele tossia afogando-se com sua própria saliva em desespero. Então assim era pressentir a morte. Saber que após ela nada existiria, apenas apaziguava o sofrimento. O completo vazio, sem nada sentir. A escuridão completa, e degradação do “eu”.
Ela deitou-se sobre ele.
- Calma querido. Tudo vai terminar bem.
Beijou o homem. Primeiro em sua boca. Depois fez sua língua passear pelos buracos em que antes haviam os olhos. Ele não conseguia mais gritar, apenas gemia. Tentando proclamar palavras que não faziam nenhum sentido. Só lhe restava esperar pela dama de trajes negros que livraria ele de toda a dor e sofrimento que no momento passava. A dama que todos temem, mas que não conseguimos viver sem sua presença. Pois no âmago de nossos sentimentos, todos sabemos, que ainda nos deitaremos com ela. O corpo todo do homem estremeceu, sua hora chegou e passou. A vida deixou seu corpo. Sua consciência se desfez. E ele descobriu a verdade que todos temem. Não há nada para se ver após a morte.

. . .

A mulher retornava para a casa da fazenda. Arrastando consigo um cadáver semidevorado. Com as vísceras arrastando pelo chão. Ela apenas se lembrava. De seu sorriso. Um grande e belo sorriso que ela implantou no rosto do homem que a amava. Usando uma pedra afiava, rasgou-lhe a face de orelha a orelha. Um grande sorriso feliz. Reverberando em sua memória. Afinal, todos anseiam por alcançarem a felicidade. Todos querem felicidade a qualquer custo. E assim ela fez. Buscou sua felicidade. Encontrou-a no corpo daquele homem. E conseguiu deixá-lo com um sorriso nos lábios. Apenas mais um belo e amável casal. Caminhando por entre os campos, após uma adorável refeição.

Marius Arthorius