terça-feira, 29 de junho de 2010

Antropofagia

Este foi o primeiro conto que eu escrevi...

As lembranças daquele sorriso iluminado pelo sol do meio dia. Imaculadas imagens fixas em sua memória. A cena repetia-se em sua mente enquanto deslocava-se por entre o pasto. Rumando de volta para a casa da fazenda. Os campos ora verdejantes, ora dourados se estendiam até o horizonte. Entremeados por pequenos capões de mata, em que as araucárias e o canto dos grimpeiros marcavam presença.
Em meio a tal paisagem paradisíaca. Cortada pelos gélidos ventos do inverno que se aproximava. Havia sido ali. O local escolhido para realizar seu ato tão sonhado. E aquele sorriso permanecia em sua memória. O último sorriso que ele teve oportunidade de dar em sua vida. Ela estava satisfeita. Saciada, pois um de seus mais profundos desejos haviam sido realizados. Em meio as lindas paisagens dos campos sulinos. Longe de tudo e de todos.
Tudo que restou do homem que um dia a amou, era aquele sorriso. Um grande e estampado sorriso, nada além disso em sua face.

. . .

Algumas horas atrás...
Passava pouco do meio-dia quando o casal resolveu sair para uma caminhada em meio aos campos após o almoço. Nenhuma nuvem no céu, apenas o sol forte e radiante. Emanando todo seu calor e radiação que faz a vida seguir seus infindáveis ciclos através das eras. Tempo além do que qualquer pessoa consegue imaginar de forma adequada. Devido a insignificância do curto período de tempo de vida que todos possuímos.
Andaram por mais de uma hora, de mãos dadas, inspirando o ar puro dos campos. Dançando entre o doce aroma das flores. Porém, sem nenhum motivo aparente, ela desmaiou. Caída no chão, inconsciente. Ele em desespero tentou ampará-la. Tudo em vão. Nada surtia resultados. A partir de tal momento, tudo na mente dela, passou ser acontecimentos incertos. Lembranças vagas. Pedaços desconexos de tempos passados. Oriundos da doce felicidade por ela experimentada.
Não demorou muito e ela acordou ouvindo aquele zumbido ensurdecedor, sua cabeça latejando. Parecendo que explodiria a qualquer momento. O mundo não mais lhe agradava. As folhas do pasto pareciam furar-lhe a pele como agulhas e facas. O sol parecia queimar sua pele impiedosamente. E o rosto dele, antes imaculado, olhando para ela. Agora parecia um cadáver em sua frente. Um pedaço andante de carne que deveria ser devorado.
Em seu rosto ele ostentava preocupação, buscando palavras para tentar consolá-la. Para ela, o som das palavras pareciam sinos ensurdecedores badalando em seus ouvidos. Arrebentando a estrutura de seus tímpanos. Ela berrou, e ele que estava abaixado ao lado do corpo dela. Acabou por cair sentado com o susto.
Ela continuou a berrar, afinal naquele local ninguém ouviria seus gritos. Deitada no chão, começou a arranhar seu próprio rosto. Cravando as unhas em sua própria face. Rasgando, dilacerando, rompendo as estruturas de sua pele. Demonstrando que por dentro somos todos iguais. Expondo o vermelho infernal que compõe nossos corpos. O sangue começou a escorrer. Tornando rubra as partes intactas de pele facial.
Ele tentava segurá-la, numa tentativa fútil de que ela parasse de ferir a si mesma. Tentando libertar-se do homem que tanto a amava, ela chutou suas genitálias e ele rolou para o lado. Lacrimejando, tamanha era a dor que emanava de entre suas pernas. Enquanto ele lamentava-se e xingava, a mulher levantou-se, com sangue gotejando de sua face.
O rosto profundamente marcado por arranhões. Olhava fixamente para o homem em sua frente. O homem que algum dia ela poderia ter amado. Entretanto, no momento, ela havia perdido o controle sobre si mesma. Libertando o animal descontrolado que existe dentro de todos nós. Ansiando por sangue e carne fresca. Um predador que espreita todas as nossas atividades. Oculto sob o manto da lucidez e da consciência. Assim o denominamos de instinto. Quando em liberdade chamam-no de loucura. E quem teria sã consciência de afirmar certamente o quê é a loucura. Se não nossos mais profundos desejos, enraizados na escuridão de nossas mentes.
Ela veio à fazenda visando dar continuidade ao seu tratamento psiquiátrico. E a única coisa que realmente fez foi abandonar o uso de seus remédios. Enganando o homem que a amava e que tanto preocupava-se com ela. E agora estava em meio a um surto psicótico, uma alucinação em que a mente domina o “eu”. Perdendo-se o controle sobre si mesmo. Libertando nossos demônios.
Ele recuperou-se da dor e levantou-se. Indagando-a se tudo estava bem. Para ele nada estava bem. Para ela, no entanto, tudo corria de forma maravilhosa. Um doce sonho de uma noite de verão. A mulher inclinou sua cabeça para a esquerda, lambendo seu próprio sangue. Sentindo o sabor de inicio doce e levemente salgado no final. Néctar da vida, regando nossos corpos. Encarou-o com um olhar vago, e após, inclinou a cabeça para trás. Olhando para o sol. O astro maior ao qual devemos nossas existências. A divindade materializada que todos os povos louvaram ao longo da história da humanidade, denominando-o de diferentes formas e criando diferentes seres para sua personificação imaginária.
Olhou para o homem novamente, que encarava-a assustado. Ela sorriu, demonstrando os dentes sujos de sangue, e ele retribuiu. No que ela rapidamente pulou sobre ele. Derrubando-o no chão.
- Seu maldito centurião! – gritou a mulher – Não irás invadir minhas terras carnais com seu corpo impuro.
Caídos no chão, ele tentava se livrar dela. E esta, cravou seus dedos nos olhos dele. Perfurando e esmagando os mesmos. Ele viu sua visão distorcer-se até sumir por completo. Quando uma dor irradiou de seus olhos. Ele urrou de dor, e acertou a mulher com um soco.
- Não me amas mais? – indagou a mulher – Esqueceu-se de sua promessa? De me amar na doença e na felicidade até que a morte nos separe?
- Sua louca! Veja o que você fez comigo! – ele estava ajoelhado, gemendo de dor. Com as mãos amparando os buracos em que encontravam-se duas massas inertes, que poucos segundos antes foram seus olhos.
Ele não percebeu a aproximação dela. Indo em sua direção com uma grande pedra nas mãos.
- Amor meu, em sua face reluz nosso amor. Sem tu não podereis viver. E dos prazeres ofertados por sua carne, vísceras e ossos, eu quero provar. – falou a mulher calmamente.
Ele virou o rosto na direção da voz. Ela então ergueu a pedra e acertou-o na cabeça. Fazendo-o cair lateralmente sobre as macias gramíneas.
- E agora, eu vos ofereço, fruto da minha carne e meu sangue. Comam e bebam, pois aqui está o messias. – falou a mulher enquanto gargalhava.

. . .

Ele acordou de sua inconsciência, pela dor de sentir seus braços e pernas serem quebrados. Gritou, chorou, esperneou. Nada adiantou. Não conseguia sair do lugar. Apenas escutava as risadas da mulher. Se ele ainda possuísse olhos, a cena que veria agora faria-o vomitar. Ela havia tirado as roupas do homem. E, ajoelhada ao seu lado. Curvou-se sobre o abdômen dele. Arrancando com a boca três nacos de carne das redondezas do umbigo do homem. Três rápidas e vorazes mordidas. Sangue rubro rapidamente flui pelos locais das mordidas. Enquanto ele tremia e gritava. Sem conseguir sair do lugar.
- Pois então, comeremos e beberemos de tua carne. – falou a mulher.
Ele gritava suplicante, e até suas cordas vocais começaram a falhar. A mulher com o rosto todo arranhado. Agora pintava sua própria face com o sangue que escorria do homem. Ela esfregava o rosto sobre as mordidas no abdômen dele. Por vezes, lambendo-as e beijado-as. Aprofundando sua língua na carne do homem que tanto a amava. Enquanto ele tossia afogando-se com sua própria saliva em desespero. Então assim era pressentir a morte. Saber que após ela nada existiria, apenas apaziguava o sofrimento. O completo vazio, sem nada sentir. A escuridão completa, e degradação do “eu”.
Ela deitou-se sobre ele.
- Calma querido. Tudo vai terminar bem.
Beijou o homem. Primeiro em sua boca. Depois fez sua língua passear pelos buracos em que antes haviam os olhos. Ele não conseguia mais gritar, apenas gemia. Tentando proclamar palavras que não faziam nenhum sentido. Só lhe restava esperar pela dama de trajes negros que livraria ele de toda a dor e sofrimento que no momento passava. A dama que todos temem, mas que não conseguimos viver sem sua presença. Pois no âmago de nossos sentimentos, todos sabemos, que ainda nos deitaremos com ela. O corpo todo do homem estremeceu, sua hora chegou e passou. A vida deixou seu corpo. Sua consciência se desfez. E ele descobriu a verdade que todos temem. Não há nada para se ver após a morte.

. . .

A mulher retornava para a casa da fazenda. Arrastando consigo um cadáver semidevorado. Com as vísceras arrastando pelo chão. Ela apenas se lembrava. De seu sorriso. Um grande e belo sorriso que ela implantou no rosto do homem que a amava. Usando uma pedra afiava, rasgou-lhe a face de orelha a orelha. Um grande sorriso feliz. Reverberando em sua memória. Afinal, todos anseiam por alcançarem a felicidade. Todos querem felicidade a qualquer custo. E assim ela fez. Buscou sua felicidade. Encontrou-a no corpo daquele homem. E conseguiu deixá-lo com um sorriso nos lábios. Apenas mais um belo e amável casal. Caminhando por entre os campos, após uma adorável refeição.

Marius Arthorius

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