terça-feira, 29 de junho de 2010

Desígnio Divino

Acordou ao ser banhado pelos primeiros raios de sol. A claridade o incomodava. A visão ainda estava turva, devido aos eventos da noite anterior. Pesadelo após pesadelo. Sonhos desconexos compostos por cenas infernais. Originadas de suas lembranças diárias. Mas não era ruim. Não. Para ele o sofrimento alheio era alimento para seu humor. A força vital pela qual ele tanto ansiava, podia ser facilmente encontrada no sofrimento.
A dor de cabeça era quase insuportável. Só seria de fato insuportável se ele não fosse apaixonado pela dama do sofrimento, a qual chamamos de dor. Sim, a dor! Imaculada sensação que faz com que nos sintamos vivos. Que reduz a tão grandiosa doçura da vida. Assim eram seus pensamentos. Melhor do que sentir dor era causar dor. Lamber a pele de uma pessoa trêmula, enquanto arranca lentamente as vísceras da mesma. Com mãos nada delicadas. Apreciando o odor emanado do interior de uma pessoa que ruma para a morte.
Seus olhos já se acostumaram com a claridade. Estava no interior de uma igreja. A sua igreja, construída com imensos blocos de rocha enegrecida pelo tempo. O altar de ouro ostentava imagens sacras, com detalhes dourados feito do mesmo material que o altar. Imagens de amigos imaginários que enfeitam as mentes das pessoas. Levadas pelo seu medo da morte e por receios diante das incertezas do futuro. Criam estes amigos para consolarem a si mesmos. Este era um pensamento que ele não podia se dar ao luxo. Pois ele era o sacerdote. As pessoas vinham até ele buscando por consolo para suas vidas supérfluas. Buscando explicações para o pós-morte e justificativas para os sofrimentos sociais. E aceitavam qualquer resposta por mais descabida que seja, pois o sacerdote ostentava uma imagem de autoridade. Ao conseguirem o consolo, criavam uma dívida para com o sacerdote. Que só poderia ser paga com sangue e submissão.
Ele olhou para fora, através dos vitrais da igreja. Viu que a fumaça ainda subia, oriunda do herege que havia sido queimado na noite anterior. Apenas mais um tolo, que questionou as supostas autoridades que dominam a sociedade. Pagou o devido preço. Como muitos pagaram e muitos ainda pagarão enquanto o tempo for tempo para a humanidade.
Uma vez que uma pessoa era acusada de heresia, não havia mais como escapar da morte. Podia apenas escolher, morte rápida ou lenta. Caso o herege confessasse o suposto crime, era imediatamente mandado para a fogueira. Pois os cânones impedem a igreja de derramar sangue. Caso negasse o crime, era torturado até a morte. Afinal, a negação nada mais é do que o “diabo” mentindo. E, para o acusado, a tortura em terra seria melhor do que as chamas eternas do inferno. As supostas autoridades não podiam estar erradas. Sendo assim, qualquer acusado era culpado.
Quem dirá um sacerdote, aquele-que-ilude, o porta voz da divindade inexistente. Este, jamais poderia ser contrariado. E até aqueles-que-governam, se submetem perante as tolas opiniões, que tanto atrapalham a sociedade, fornecidas por aqueles-que-iludem. Aceitam a opinião destes seres nefastos, sanguessugas de mentes, pois todos temem a única certeza absoluta da vida humana. A certeza de que a morte chega para todos.
E ali estava, o sacerdote, preparando-se para mais um dia de torturas e mortes. Santo trabalho. Torturando e matando pessoas inocentes, cujo único erro foi questionar e pensar. Tentaram ter mentes livres. Arrebentando as correntes dogmáticas que são impostas em todo integrante desta sociedade. Libertaram suas mentes. Infelizmente encontraram um fardo pesado. Mortes imersas em torturas. Sempre justificadas como desígnio divino.
O sacerdote desceu até o porão da igreja, passando por corredores obscuros, iluminados por fracas labaredas de tochas presas às paredes. Pessoas encontravam-se acorrentadas no porão. O choro lamuriante era a sinfonia do dia. Apreciem, pois o maestro acabou de chegar. Ele colocou seu crucifixo, fez o sinal da cruz. Foi até uma lareira com brasas acesas. Retirou deste lugar uma panela, cheia de chumbo fervente. Rumou para a pessoa mais próxima de si. Havia no mínimo uma dezena de prisioneiros. O mais próximo era um jovem que questionou a autoridade do padre durante a catequese. Pagaria agora por sua insolência. Ele estava firmemente preso. Mais dois sub-sacerdotes se aproximaram. Segurando a cabeça do jovem e mantendo sua boca aberta. Colocaram um funil em sua boca. O sacerdote então despejou o chumbo derretido direto na garganta do jovem. O cheiro de chumbo misturado com carne queimada logo tomou conta do ambiente. Magnífico aroma da purificação social.
Ele nunca mais questionaria as autoridades. Gemidos guturais foram emitidos das profundezas do jovem completando a tão esperada sinfonia da tortura. Ele tentava, em vão, se libertar. Debatia-se, tentava cuspir o conteúdo que encontrava suas vísceras. Dentro de si, ardia um inferno. Metal e carne se tornavam um só. Não tardaria para a morte alcançá-lo. As pessoas ali presentes choravam e gritavam. Temendo o horroroso fim que estava reservado para elas. Cada uma provaria uma tortura diferente. Purificadas elas seriam. Para conseguirem alcançar a eterna salvação de suas almas inexistentes.
Do lado de fora da igreja, uma multidão havia se reunido. Perante os gritos de dor dos hereges. A multidão ajoelhava-se e emocionava-se. Com o bom cumprimento das vontades “divinas”. Louvavam, sorriam e festejavam. Levados por suas crenças irracionais. Agradecendo ao sacerdote por “purificar” a sociedade. Livrando-as dos questionamentos que tanto assolam a mente humana, que poderiam fazê-las deixar seu conformismo e encarar as mudanças. E estas mesmo sendo positivas, acabam por assustar a sociedade.

Marius Arthorius

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