terça-feira, 29 de junho de 2010

Exorcismo social

Dedicado à Emili, pela companhia e conversas filosóficas.

A dor lacerante oriunda de seus pés, como se estivessem sendo repicados metodicamente. Deitado em alguma espécie de maca, fortemente amarrado. Os olhos vendados. Apenas sentia gélidos dedos percorrendo seu corpo. Lâminas rasgando sua pele. Podia claramente sentir que alguns pontos de sua pele haviam sido costurados fortemente. Sentia a dor irritante e constante de tais partes. Em que inferno de local estaria?
As vendas foram retiradas. A forte claridade do local ofuscava sua visão. Conseguia distinguir apenas uma forma humanóide observando-o. Levou algum tempo até perceber que a pessoa em sua frente usava vestes médicas. Vestes brancas, marcadas pelo contraste vermelho do sangue impregnado em diversas partes. Olhou ao redor. As paredes e o chão eram recobertos por pequenos azulejos brancos. Uma lâmpada fluorescente no teto irradiava a forte luminosidade branca. No chão havia sangue derramado por diversas partes. Ao lado da maca, uma mesa metálica com diversos instrumentos cirúrgicos. E, o horror, diversas partes humanas, amontoadas em uma bacia plástica.
- Onde eu estou? – indagou com uma voz trêmula o prisioneiro.
- Você está aqui. Não lá, apenas aqui. Não lhe convém saber a localidade. Pois essas informações são desnecessárias. – respondeu a voz fria por detrás da máscara médica que ocultava o rosto.
- Isso é um hospital? Eu sofri algum acidente? – perguntou o prisioneiro.
- Seu acidente foi nascer. Ser errante que se recusa a pensar. Tu és fruto podre. A putrefação é teu destino, para que então, a vida possa brilhar. – falando isso o médico empunhava seu fiel instrumento cirúrgico, um bisturi. – Aqui não é hospital, apenas se for um hospital para a sociedade. Indivíduos não são curados neste local, eu apenas liberto a sociedade de seu mal.
- Então por quais motivos estou aqui e o que você fez comigo? – perguntou o prisioneiro tentando libertar-se das amarras que o seguravam preso à maca. Cada movimento fazia surgir dor de diferentes partes de seu corpo. Cortes, lacerações e pontos costurados tomavam conta do que antes foi um corpo inteiro.
- Quero apenas que você compreenda tudo que seus atos originaram. Nada há após a morte, assim sendo, não há nenhum ser supremo que avaliará sua vida. Não há justiça divina. Faça você o bem ou o mal. Deve-se, pois, fazer o bem por saber que esta será a melhor convicção para se ter. Seus atos serão lembrados pelas gerações vindouras. E estas, poderão ser gratas a você, se você for bom. Entretanto, você foi mal. Ser irracional. Os piores crimes e atrocidades você cometeu. – falava o médico, curvado sobre o prisioneiro, enquanto uma marca de saliva tornava-se visível na máscara que ele usava. Rodava o bisturi no ar como um guerreiro com sua espada em combate. – Os crimes contra a mente das pessoas! Esses foram os seus crimes! Contra a liberdade individual e contra o livre raciocínio que toda pessoa tem o direito de ter! Pagarás por tais atos, ó aquele-que-ilude!
- Que deus tenha piedade de sua loucura, pois sou sacerdote. Sou os olhos e ouvidos de deus, proclamador das verdades. Se fizeres algum mal para mim estarás provocando o próprio deus – respondeu o prisioneiro.
- Tu és criatura cruel! Que assola a humanidade com suas mentiras fantasiosas de além-mundo!
- Seu louco! Solte-me agora!
- Louco?! – respondeu furioso o médico arrancando a máscara que cobria seu rosto, mostrando seu sorriso salivante de dentes perfeitamente brancos e reluzentes. Cravou o bisturi no umbigo do prisioneiro, fazendo sangue verter, arrastou o bisturi rumo ao tórax. Abrindo uma fenda vermelha e superficial na pele. Enquanto o prisioneiro se contorcia e chamava pelo deus que ele tanto havia louvado. – Sua divindade não responderá aos teus apelos. Da mesma forma como ela não atende aos chamados de milhares de crianças inocentes que morrem de fome todos os dias! Vítimas do sistema econômico. Tudo o que você fez foi juntar suas mãos e proclamar palavras ao vento, nenhuma ação digna para com a sociedade. Mais vale poucas pessoas trabalhando do que milhões e milhões ajoelhadas perante imagens, esperando que alguma salvação venha dos céus.
O médico fez mais uma incisão no tórax do prisioneiro, indo de um mamilo a outro. O prisioneiro gritava e debatia-se tentando escapar de seu castigo. Enquanto sua última refeição escapava pela sua boca na forma de vômito. Liberando no ar um característico odor azedo. O médico então trocou o bisturi por uma pequena serra elétrica. De lâmina esférica e giratória. O zumbido do motor de tal instrumento tomou conta da sala e o horror se apossou dos olhos do prisioneiro. O médico iniciou a abertura do tórax de seu paciente, as costelas tremeram, por um momento a lâmina da serra enroscou nos ossos. Um forte soco no tórax fez a lâmina soltar e seguir seu digno trabalho. Chuva vermelha, sangue jorrava e espalhava-se para todos os lados. Escorria sobre a pele do prisioneiro até a maca e desta para o chão. A roupa do médico estava tornando-se cada vez mais rubra. Gritos e mais gritos originavam-se da garganta do prisioneiro.
- Então criatura cruel, aquele-que-ilude. Que se apossa das mentes indefesas e impõe suas crenças. Não gostas da dor? A Dor, um dos mais puros sentimentos, originado pelos atos nefastos ou amorosos. Originado de danos físicos ou sentimentais. Sente-se dor ao perder a pessoa amada, ou ao estar longe da mesma. Sente-se dor ao cortar uma parte do corpo ou ao mutilar um membro. Quem conseguirá compreender sua ligação com os demais sentidos? Dor acarreta sofrimento. Felicidade? Somente para alguns tipos de loucos. Não que sejam poucos.
O sacerdote aprisionado balbuciava palavras sem nexo. Os olhos vagos e distantes, moviam-se rapidamente em suas órbitas. Golfadas de sangue saltavam de sua boca, seu tórax era um lago vermelho, um lugar que qualquer vampiro gostaria de banhar-se. O médico admirava sua obra de arte. As tonalidades de cores perfeitamente agrupadas, cenário artístico inconfundível.
- Será que alguma pessoa sentirá saudades de você? Talvez aqueles que venderam as mentes para você. Em troca de salvação eterna e reconforto ilusório. Pois temem que a morte esteja presente atrás de cada esquina. Talvez estes sintam sua falta. Ah! A Saudades, essa vil criatura nefasta, que age em companhia da Esperança. Duas senhoras malévolas que trazem tanta aflição para as pessoas. Se forem acompanhadas da Incerteza, então se tem o palco para que a Dor e o Sofrimento possam agir. Como entender tais criaturas? Pois se até a mais fria e calculista das pessoas já experimentou sentimentos em algum momento de sua vida. Tenta-se em vão ser como uma máquina, apenas agir, nada sentir. Que diferença fará? Se no final, cada um é apenas mais um animal. Então, nada melhor do que desfrutar dos mais variados sentimentos.
No lago de sangue do tórax do prisioneiro era possível perceber as oscilações ocasionadas pelos batimentos cardíacos. O corpo dele tremia por inteiro, movia a cabeça de um lado para o outro, gemendo e grunhindo. Lentamente asfixiando com os pulmões colapsados e o tórax arrebentado.
- Diga-me, criatura das trevas, desejas proclamar alguma palavra antes que seu fim chegue? – disse o médico enquanto deslizava sua mão protegida por luvas de látex sobre a testa do prisioneiro. Deslizando-a pela lateral da face, até chegar ao queixo, para então segurar firmemente a cabeça do prisioneiro. – Nada a declarar em sua defesa? Veja que sou benevolente, não agi como a sua inquisição, pois lhe dei uma chance de oferecer-me vossa opinião. Apesar das provas já indicarem que tu és um ser abominável. Fujam as pessoas da presença de teus semelhantes. Corram e gritem assustadas, pois o parasita mental está a caminho. Parasita que agora irá perecer.
Nenhuma palavra saiu da boca do prisioneiro. Apenas baixos gemidos, arfadas de um ser tentando encontrar o ar. Seus pulmões não mais funcionavam. O mundo tornava-se escuro para ele. Nenhum som, nenhuma sensação. Nem mesmo a visão do médico que tinha submetido-o a tal castigo.
- E nesta sociedade o que tu vê? Oculto, abaixo das sombras da escuridão dogmática, o que tu vê? O medo? A morte? Responda-me! Se ainda há um pingo de vida digna em teu corpo, pronuncie as palavras e não ouse dar gargalhadas! – no lago de sangue, as oscilações causadas pelos batimentos cardíacos tornavam-se cada vez mais lentas, com um intervalo de tempo cada vez mais longo. – Encontrou o teu futuro? Chegou até ele? Aqui no presente, ao qual estamos eternamente acorrentados. O passado se foi e novos momentos chegam a todo instante. Que venham os tempos do amanhã. O futuro cheio de incertezas semideterministas, originadas de nossos atos e escolhas. Influenciado por escolhas de outros. Nada a declarar?
O corpo do prisioneiro estremeceu em espasmo uma ultima vez, os olhos reviraram nas órbitas. A vida chegou a seu fim. Suor escorria da testa do médico, cirurgia de precisão inigualável. Não poderia perder a morte que havia em suas mãos. O artista interage com sua obra do início ao fim. Criando uma ligação especial e, por vezes, até sentimental. A obra médica estava quase finalizada.
- Devem-se temer as criaturas que se escondem debaixo do manto obscuro do futuro? – perguntou o médico. - Ou simplesmente seguir adiante nesta luta cruel e implacável, nascendo a todo dia que se inicia e morrendo a cada dia que termina. Um dia a mais na vida, um dia a mais rumo a morte. Assim é, assim foi, e assim será. Sou médico e como devo livrar a pessoa de seus males, jurei para mim mesmo que não deixaria nenhuma doença corromper as pessoas. Extirpando os cânceres da sociedade. Eis minha missão, pois sou artista da razão. Nenhum ser pútrido continuará a parasitar nossa insana sociedade, enquanto eu estiver aqui para com tal exorcismo mudar a mentalidade.
O médico colocou as mãos dentro do tórax cheio de sangue. Como alguém que lava seu rosto em uma bacia de água, assim ele o fez. Lavou seu rosto com o líquido vermelho que há dentro de todos. Refrescando-se com fluido vital, impregnando-se com cheiro visceral. O médico cumpriu sua missão.
Marius Arthorius

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