terça-feira, 29 de junho de 2010

Vivissecção

Vinde a mim, ó desgraça funesta. Arrebente meu corpo com a gadanha que tu carregas. Taxidermize meu corpo, impregne ele com o sal que colocamos dentro da pele dos animais eviscerados que serão empalhados. Faça a precisa incisão inicial abaixo do meu tórax, arrastando a lâmina até minhas genitálias, separe a pele da carne. Preserve meu couro para a posteridade. Pois é com a aparência externa que as pessoas se importam. Destrua tudo que há dentro de mim. Preencha minha pele com macio algodão, sustentado por maleável arame de metal. Assim meu interior será agradável para todos.
Arranque meus olhos, pois eles são as janelas da alma. Através deles demonstramos os sentimentos de nosso encéfalo, sempre oculto na caverna craniana. Forneça para mim olhos de vidro. Que nada demonstram além do olhar vago e insensível de uma criatura morta. Para que assim eu não chore mais pelas paixões perdidas, pelas palavras não ditas e pelos momentos de alegria que ficaram no passado. Assim tem-se o protótipo perfeito do estereótipo social. Um ser que nada sente e que com nada se importa.
Aqui eu me encontro. Com todos estes objetos afiados em minha frente. Frio metal que dilacera a pele humana, como frias palavras que dilaceram os sentimentos humanos. Trazendo-nos as incertezas que se ocultam em todas as partes da vida. Viver é como andar em uma corda estendida sobre um abismo. Seguimos em frente, tentando manter o equilíbrio, rumo ao futuro. No entanto, basta um pequeno erro para cairmos na escuridão abissal. E dela não há mais retorno. Pois nenhuma mão poderá te alcançar, quando com a morte você se encontrar.
Os pregos com os quais agora me perfuro em autoflagelo, fazendo-os romperem a imaculada estrutura de meus ossos, rompendo barreiras rígidas e ocultas de osteócitos e osteoblastos. E talvez até dos osteoclastos. Numa vã representação da dor que assombra minha consciência. Destruindo minhas memórias como se eu tivesse caído nas garras de um parasita indomável. Para o qual eu represento apenas um banquete carnal a ser calmamente devorado. O rubro sangue escorre por inúmeras perfurações espalhadas em meu corpo. Libertando os eritrócitos antes aprisionados em minhas veias e artérias, livres para se encontrarem com alguns leucócitos. Livres para trazerem a morte para perto de mim.
Pudera arrancar todo e qualquer sentimento que verte através das conexões dos neurônios que compõe meu cérebro. Livrando a mim mesmo de sentir qualquer coisa triste ou feliz. Apenas vivendo, alheio e independente de tudo. Em uma cirurgia cerebral e corporal devo interligar meu consciente ao subconsciente, e assim, poder purificar meu corpo através do colapso de minha epiderme. Devo arrebentar meus músculos, como se os sarcolemas fossem devorados por um verme. O nematóide que destrói o antropóide.
Com a faca afiada, despedaço meus dedos. Um a um, separando cada falange. Dissecando cada nervo e tendão. Cortes rápidos e certeiros. Ignoro a dor, pois ela não se compara ao desespero que se instala em minha mente. Dividido na eterna dualidade que freqüenta toda pessoa, dividido entre a vida e a morte. Entre a perda e a rejeição, tudo vira aflição. Percebe-se que felicidade é mera ilusão. A corda da vida oscila fortemente, desgastando-se e quase arrebentando. Mas não é o suficiente, muito mais deve ser feito. Pois a loucura ainda não me encontrou. Dela eu dependo para que talvez eu desfrute da felicidade. Um escape da realidade.
Ainda usando lâminas afiadas, inicio a retirada de minha pele. Como se fosse uma simples veste que oculta a real natureza humana. Que oculta toda a nossa ancestralidade evolutiva. E é essa aparência que quero libertar. Somente assim poderei em paz descansar. Arranco-a lentamente saboreando a descoberta do desconhecido. Tornando minha beleza interior algo conhecido. Sem minha pele para me proteger, sinto quão gélido, frio e cruel é o mundo. Indiferente perante nossa presença animal. Meu corpo, agora vermelho, apresentando nossa cor interior. Como a pele de um demônio imaginário. Estremece perante o sopro do futuro. Emanado de algum dragão que se oculta no abismo que vejo abaixo de meus pés. O abismo da morte, no qual poderia finalmente encontrar a loucura. Meu corpo entra em espasmos devido às tormentas do passado. Seguro-me fortemente na corda vida, para não cair antes do devido tempo. Para não morrer antes do derradeiro momento. Pois a libertação deve ser finalizada. Para que a morte possa ser cruamente aproveitada.
Perco o controle sobre meus músculos. Com esse acontecimento, o conteúdo de meus intestinos escapa, deslizando sobre minha pele, esquentando minhas pernas. O adorável cheiro humano que está sempre perfumando a sociedade. Que demonstra o quão ridícula é nossa presença, apesar de todas as máscaras de importância que tentamos criar.
É necessário raspar a carne que envolve meus ossos. Assim aliviando o peso que há sobre mim. Pedaço por pedaço vou retirando-a. O colapso dos nervos que impulsionam os sinais de dor até meu cérebro. Deixando-o imerso em profunda confusão. Despedaço meu corpo, semelhante a qualquer outro pedaço de carne. Tudo para ter um segundo de tranqüilidade, esquecendo o desespero solitário que está enraizado dentro de mim. Sugando todas as minhas forças e vontades. Os sonhos se desfazem perante a doce ilusão da realidade. Realidade que eu percebo através de meus sentidos que facilmente podem ser enganados para ver tudo distorcido.
Esse barulho infernal que ouço, seria o barulho que a verdade produz em nossas mentes? Ou seria o barulho da dor representada através de meus gritos desesperados? Ainda tenho forças restantes. Com uma longa agulha perfuro meus ouvidos, faço o metal adentrar na escuridão de minha caverna craniana. Uma pequena dor para se obter o silêncio enlouquecido dos que foram eternamente esquecidos. Continuo a gritar, sinto a vibração de minhas cordas vocais. Faça o desespero parar! Pois se você for amar, então também poderá chorar. É o maldito risco que todos encontram quando tentam arriscar.
A mesma agulha que usei para perfurar meus ouvidos, uso para costurar meus lábios. Não sem antes arrancar a minha língua. Ela tenta escapar de minhas mãos como se tivesse vida própria. Nada que um alicate e uma tesoura não possam resolver. Está feito. Em minha frente a estrutura que permitiu que eu descobrisse os sabores do mundo. Sangue se mistura com saliva em minha boca. Engulo essa sacra mistura, como alguém que tenta engolir o choro do sofrimento. Sempre há um pouco mais para ser engolido. Já que o sofrimento é o peso que nos afoga rumo as entranhas da terra.
Quando encontrar a morte, vislumbrarei o que havia antes da vida. A escuridão. O silêncio, a ausência de sentidos e de imaginação. É a escuridão que se encontra antes e depois deste pequeno lampejo que chamamos de vida. E o que fazemos para aproveitar tal lampejo? Transformamo-nos em escravos. Escravos do dinheiro. Do sistema econômico sem o qual não conseguimos viver. Inusitadamente, o que nos permite viver é justamente o que nos impede de aproveitar a totalidade da vida. Não podemos comer papel, mas é ele que nos mantém vivos.
Mesmo com os sentidos destruídos ainda sou atormentado. Pelas lembranças da felicidade que não mais existe. E que agora não voltará a existir. Pois a corda da vida está se desfazendo. Não tenho mais forças para mantê-la. Preciso parar. Não sei como voar, para que do abismo eu possa escapar. Sei apenas caminhar e quase me arrastar. Através deste caminho no qual ninguém me ajudará. Não há como continuar. Com a fria lâmina que tanto trabalhou neste dia, que agora se encontra aquecida pelo meu sangue, irei partir meu coração em definitivo. Para não mais se recuperar. Cravo-a em meu peito. Lentamente rompendo todas as estruturas restantes. Deslizando rumo ao meu músculo cardíaco que se debate como um animal aprisionado que busca liberdade. Enquanto lágrimas dançam insanamente em minha face.
Desculpe Vida, sei o quanto tu és valiosa. Não quero depreciar sua presença, para mim você está acima de todas as coisas. Somente pelo seu valor eu já abnegaria prontamente a presença da Morte. Mas se neste caminho eu for obrigado a estar na presença da Solidão e da Escuridão, então prefiro encontrar estas duas na presença da Morte. Afinal, ela é o local de onde nós viemos.

Marius Arthorius

Nenhum comentário:

Postar um comentário