Escrito em conjunto com o escritor Márson Alquati.
“Quem esquece os erros do passado, está fadado a repeti-los.”
O sol iniciava a sua atividade, surgindo ao longe, no horizonte distante e começando a iluminar a imensidão da planície descampada. Nada além de terras vazias e desprovidas de qualquer forma de vida, até onde os olhos podiam enxergar. Uma fina camada de gelo recobria o solo árido, refletindo o frio da noite anterior. O antigo guerreiro de asas negras arrastava-se solitário e reflexivo, em direção ao sol nascente. Assim vinha se orientando durante toda a sua atual vida. Qual mariposa desgarrada que se orienta seguindo a lua, ele o fazia, perseguindo dia após dia, o astro-rei.
Carregava, embainhada na cintura, a espada, cuja lâmina maculava-se com o sangue coagulado e pútrido de seus inimigos. Sua armadura, outrora prateada e lustrosa, agora se ressentia, amassada e suja de terra e sangue. De terras distantes e do sangue dos inimigos e amigos, mortos brutalmente em uma cruel e sangrenta batalha. Todos se foram. Sozinho ficara. Sim, era o único remanescente de seu povo. E agora rumava decidido ao encontro da derradeira batalha. A última a ser travada em sua breve vida. E a Morte, aquela inexorável e sombria dama revestida de negras roupagens e sua implacável foice o rondavam, dançando ao seu redor e zombando do triste fim a que estava condenado.
O triste fim de não ter um fim.
As melancólicas lembranças dos gritos de horrores que emergiam das profundezas viscerais das pessoas com as quais convivera a sua vida inteira permaneciam gravadas em sua memória. Gerações inteiras surgiram e desapareceram, enquanto seguia amaldiçoado a vagar pela superfície de um mundo infestado de necroses e morte, dor e sofrimento, situado além das leis de imposição do tempo e do espaço, sem que jamais conseguisse alcançar o seu momento final, sem que pudesse receber o seu merecido descanso.
Embora muitos contestassem tal afirmação, a vida eterna, pelo menos para ele, não era uma dádiva. Mas uma terrível maldição, em que a morte não era encarada como um ato nefasto, e sim, a almejada conclusão de um ciclo, ao qual, todos eram destinados. Todos os que um dia o guerreiro alado amou e agora se foram, ceifados do tabuleiro, definitiva e inexoravelmente excluídos do jogo. Todos menos ele. Um ciclo completo que se findava a cada nova geração. Ao princípio, a solidão parecia atraente, tornando-se, em determinados momentos, uma excelente e aprazível companheira. Entretanto, quando se permanece por um longo período na solidão, descobre-se que esta pode se tornar demasiado monótona.
Imerso apenas em seus próprios pensamentos, a loucura se encontrava atrás de cada porta, de cada pedra ou árvore por onde ele andejava. Passou, então, a ansiar pelo fim de sua própria existência. Que a sua combalida consciência deixasse de existir. E, com ela, toda dor e sofrimento, impostos pela inevitável e sádica passagem do tempo.
Andando pelo gélido deserto, acompanhado das três damas que todo ser vivo teme: a Morte, a Loucura e a Solidão, três irmãs que, fatal e infalivelmente, conduzem ao mesmo caminho, não tardaria para o guerreiro atingir o primeiro patamar rumo aos seus objetivos de vingança. Finalmente, a ansiada paz poderia ser alcançada. Porém, para isso, sangue culpado e também inocente deveria ser derramado, uma vez que em batalhas como a que estava prestes a travar, não existiam inocentes. Todos eram culpados, portanto, mereciam ser executados!
De repente, a voz da consciência emerge na obscurecida mente do guerreiro andante e o faz perceber que, por inúmeras vezes, as pessoas em geral, deixam-se levar, seguindo as caudalosas correntes da vida, guiadas por pensamentos fantasiosos, quase sempre forjados pelos próprios erros e experiências. Com ele não havia sido diferente. Apenas acompanhava o curso do tenebroso Rio Destino. Sofrimento e dor foram elementos sempre presentes em sua desgraçada vida, mas agora tudo isso estava prestes a mudar. Assim seguia o guerreiro, refletindo sobre sua jornada terrena, consciente de que a sua única certeza era a vingança.
* * * * *
Muito tempo antes...
Uma sangrenta guerra inter-racial entre anjos e demônios corria solta, devastando o mundo em que ambos viviam. Ninguém mais lembrava como havia começado. Ninguém se importava. O sangue e a espada, o ódio e a lança falavam mais alto. A guerra já se estendia por incontáveis séculos, dizimando ambas as raças até que restassem somente uns poucos milhares de soldados em cada facção. E, intencionados em ultimá-la, os demônios haviam iniciado uma gigantesca ofensiva contra o território dos anjos. A batalha fora terrível e só uns poucos representantes celestiais haviam sobrevivido às hordas do mal.
Foi ao raiar de uma manhã ensolarada. O acampamento dos anjos ainda dormia quando foi subitamente invadido e totalmente dizimado. Os anjos nada puderam fazer para impedir que as suas mulheres e crianças fossem chacinadas. Ninguém foi poupado.
Após derrotar o inimigo em mais uma violenta batalha em terras distantes e vencer a distância da longa viagem através das montanhas e vales, acompanhado de seu batalhão, o líder da gloriosa raça dos anjos, Salahtiel, finalmente alcançou os limites do acampamento-cidade de seu povo. E o que contemplou, remeteu-o, no mesmo instante, às profundezas do mais nefasto e cruel Inferno. O terreno, outrora composto por exuberantes campos dourados de trigo, dançando acariciados pelos doces ventos e entremeados por límpidos córregos de água cristalina, no momento, era uma terra enegrecida pelo fogo, que ainda mantinha a sua fumaça estagnada no ambiente. Uma névoa obscura que pairava a pouca altura, tentando inutilmente ocultar os horrores da guerra. Uma devastadora e nefanda guerra...
Cadáveres, de anjos e demônios, jaziam espalhados por todas as partes, entremeados por um verdadeiro mar de sangue e vísceras. O dourado do trigo ressentia-se de vermelho e azul. O sangue dos demônios e o dos anjos. Corpos mutilados, estraçalhados, despedaçados. Vidas abreviadas. Sonhos interrompidos.
O ódio tomou conta dos recém chegados. E um incontrolável desejo de vingança foi crescendo dentro de cada anjo ali presente. Ainda era possível ouvirem o som lamuriante e desesperado dos desafortunados compatriotas moribundos, lutando para se manterem vivos.
E, completamente obliterados pelo ódio e pelo desejo de reparação do mal, partiram ao encalço do inimigo. Não tardou para avistarem-no. Ao comando de Salahtiel, o batalhão angelical dividiu-se em dois grupos. E, separados, simultaneamente arremeteram-se sobre o amaldiçoado exército demoníaco, cercando-o, prontos para atacarem pelos flancos, como as pontas de um alicate que se fecham sobre o dente a fim de extraí-lo.
Munidos de seus enormes escudos retangulares, espadas, arcos e lanças empunhadas, avançaram sobre a terra queimada e caíram ferozes sobre as tropas infernais. O embate que se seguiu foi cruel e desigual. Eram apenas cem anjos contra milhares de demônios. Mesmo assim, ao final do embate, todos os soldados do Inferno, sem exceção, haviam tombado sob as lâminas azuladas das armas angelicais. E, só então, Salahtiel percebeu que todos os anjos também. Só ele havia sobrevivido. O último representante de sua raça.
Foi quando ouviu um gemido curto e abafado aos seus pés, seguido de mortiça voz. Era o líder daquele batalhão de demônios, conjurando uma maldição contra ele. Trespassou o coração do sujeito, mas não evitou o mal conjurado.
Desde então, ele que não tinha mais razões para viver, tornara-se imortal.
Imortal e solitário. Imortal e infeliz.
* * * * *
De volta ao deserto...
Acabara de eliminar o último representante da raça dos demônios e agora partia em busca do próprio destino. A última batalha estava prestes a ser travada.
Gerações e gerações haviam transcorrido desde que fora amaldiçoado pelo líder dos demônios. Condenado a vagar até os confins do mundo caçando àqueles que haviam trazido a desgraça ao seu povo.
Para ele, tão amplamente condecorado no passado pelas vitórias dos anjos, medalhas não mais possuíam valor. A única medalha que Salahtiel desejava era a da redenção.
Redenção só possível de ser alcançada com a Morte. E esta, para ele era impossível e inalcançável. Contudo, restava uma vã esperança. Uma remota chance de mudar os inexoráveis rumos do destino.
Chegou a um desfiladeiro que desembocava num precipício que não se podia ver o fundo de tão escuro e insondável que era. Aproximou-se da beirada e espiou. Só viu trevas e escuridão. Hesitou, lembrando-se do seu povo, dos parentes, amigos e companheiros de armas, da mulher e dos filhos mortos durante a invasão ao acampamento-cidade.
Só teria uma oportunidade. Se falhasse, tudo estaria perdido. Inspirou profundamente, procurando reunir a coragem necessária. Fechou os olhos e, sem medir as conseqüências dos seus atos, avançou para o vazio, sendo engolido por ele.
* * * * *
Porém, algo deu errado. E, ao acordar, Salahtiel percebeu que não só não havia morrido, como se encontrava agora, em outro tempo e noutro mundo, habitado por criaturas inferiores, primitivas e frágeis, carentes de alguém que as auxiliasse em sua evolução. Compreendeu que ele era o guia e que guiá-las seria o seu castigo eterno. Resolveu, então, fazê-lo pelas sombras. E, ato contínuo, alterou o próprio nome, por outro, mais condizente com a sua nova condição de portador e guardião da luz, além de carrasco dos ímpios e dos de má índole.
E, desde então, Lúcifer, o anjo caído, vive entre nós...
Marius Arthorius
terça-feira, 29 de junho de 2010
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