Acordou com uma tremenda dor de cabeça, um gosto horrendo em sua boca, um
pedaço de casca de milho ainda presa entre os dentes, havia dormido no chão da
cozinha e nem mesmo se lembrava desse acontecimento. Sentou-se no chão, estava
nu, tal como veio ao mundo. Porém sua pele estava suja, coberta com uma
estranha e fétida substância marrom, algumas partes com um líquido vermelho. Um
longo verme esbranquiçado nadava para sobreviver em meio àquelas duas
substâncias. Levantou-se, no fraco reflexo que se formava no vidro da janela da
cozinha, conseguiu ver que sua boca estava toda suja com aquela substância
marrom. E vomitou, pois começava a se lembrar de tudo. Vomitou no chão da
cozinha e logo caiu sobre os próprios joelhos. Enquanto seu esôfago era
queimado pelo ácido estomacal diluído que lhe escapava pela boca e lágrimas lhe
vertiam dos olhos com o ardor.
. . .
Na noite anterior tudo estava tranquilo. Ele tinha convidado ela para
jantar em sua casa, apenas um cachorro-quente, molho vermelho com bastante cebola
e milho para acompanhar. Preparam juntos a refeição, o lindo casal de pombinhos
que preparavam juntos seu alimento. Sentaram-se a mesa e começaram a comer.
Discutiram Nietzsche, Popper, Sagan e Schopenhauer. Mas todo alimento chega ao
seu fim.
Havia ainda na panela apenas uma salsicha e uma porção de grãos de milhos
imersos no molho acebolado. Ambas as duas pessoas presentes na cozinha ainda
estavam tomadas de fome e os dois tentaram se apossar da última salsicha ao
mesmo tempo. Quando possuído de fome todo humano passa a ser dominado pelo
egoísmo adormecido de nosso caráter.
Ele e ela se entreolharam. Não era amor que havia em seus olhos, e sim, o
mais puro sentimento humano, o sentimento que pulsa constantemente nas
profundezas neurais de nossos pútridos encéfalos. Era o egoísmo que brilhava e
reluzia em seus olhos, querendo se tornar livre e dominar aqueles corpos,
extinguindo qualquer resquício de moralidade que pudesse existir na mente
daqueles macacos pelados. Pois bem sabemos que toda pessoa não passa de um
símio com poucos pelos.
Cada um fisgou a salsicha com seu garfo, e puxou para seu próprio lado.
Despedaçaram o estranho pedaço de carne rosada. Novamente se encararam. Urraram
uma para o outro como dois animais famélicos.
- Sou mulher – disse ela - Seja um bom cavalheiro e me deixe ficar com a
última salsicha.
Houve mais um momento de tensão entre os dois, tempo para que a razão
dominasse o egoísmo, ou, tempo para que o egoísmo planejasse alguma de suas
artimanhas. Tomado pelo feminismo radical que por vezes não prega a igualdade
entre os sexos e sim a dominação feminina sobre os homens, ele acabou por
entregar a última e tão preciosa salsicha para a sua companheira.
Ela pegou um pedaço de pão, colocou a salsicha arrebentada sobre ele,
despejou o resto de molho com cebola e milho. Devorou o cachorro-quente de
forma violenta, fazendo molho vermelho sujar sua camiseta. Incitava a delícia
da alimentação para deixar ele com mais vontade de possuir a valiosa salsicha.
Ela terminou de comer.
Após comer lambeu seus dedos e soltou um grotesco arroto.
Mas o cavalheirismo dele não demorou a ser tomado pelo egoísmo humano,
ele queria voltar atrás, queria mudar sua escolha. Queria mudar o passado e
usufruir seu livre-arbítrio. Ele tinha liberdade de escolha e faria uso dela,
mesmo que as consequências estivessem num ponto fora do alcance legislativo e
além da compreensão das mentes comuns.
Ele levantou-se e foi até a gaveta da pia, pegou uma faca. Voltou-se para
ela, que estava sentada de costas para ele. Andou até ela, pegou-a pelo
pescoço. Obrigou-a a deitar-se sobre a mesa.
- Chegou a hora querida! Direitos iguais para todos, esqueceu-se do que
as feministas proclamaram? A salsicha não pertence apenas a você! Ela é minha
também e aqueles milhos, espero que eles ainda estejam inteiros em seus
intestinos. Agora é hora de fazer a partilha do pão, nesta Santa Ceia que
partilhamos. – ela começava a sufocar com a pressão da mão dele em sua
garganta.
Cravou a faca na barriga da mulher, logo abaixo do osso esterno e
direcionou o corte até o umbigo dela. Ela desmaiou com a dor e não veria a
própria morte, pobre moça, perdeu a felicidade de ver a própria morte, o
momento mais caloroso, único e especial de nossas vidas mundanas! O momento em
que deixamos de ter qualquer preocupação. Abriu o abdômen dela em duas metades,
dois bifes suculentos que pendiam para cada lado do corpo feminino, revelando
toda a beleza interior que havia nela.
E lá estava! O estômago e os intestinos! Ele puxou para fora aqueles
órgãos quentes recheados de farto alimento. Com fortes dentadas rasgou aqueles
tecidos, chacoalhou pelos ares o conteúdo deles até que encontrou. Ainda
estavam ali, os pedaços mastigados de salsicha e os grãos de milho. Pegou seu
alimento e ingeriu-os. Sujando-se com toda imundície humana. Saciando seu
egoísmo e proclamando seu livre arbítrio.